Por que há tão
poucos candomblés de Exu na Bahia?
Há
exatas três décadas, o Carnaval de Salvador estava mergulhado numa polêmica em
relação à sua decoração de rua. Com o tema ‘Terra dos Orixás’, a ideia era
enfeitar os circuitos e pontos turísticos com alegorias representando as
divindades do candomblé, e parte do povo de axé chiou. Para relatar o impasse,
a extinta Revista Manchete, de circulação nacional, mencionava a posição de um
dos orixás no Centro Histórico usando as seguintes palavras: “[durante a
folia], o Pelourinho se travestiria em Praça Exu, orixá que no sincretismo
representa o Diabo, também chamado de compadre ou homem da rua”.
Associar
Exu ao capiroto do cristianismo só começou a ser questionado de forma mais
veemente há bem pouco tempo, mas os reflexos de anos de veiculação do orixá da
comunicação, justamente, nos meios de comunicação, como a representação do mal,
pode ter tido reflexo em algo que pouca gente se apercebe: o reduzido número de
terreiros (e até iniciados) que tem Exu como regente.
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Para
mudar esse cenário (a lógica cristã de bem e mal não converge com o universo
candomblecista), o orixá ganhou uma ajuda bastante importante: o babalorixá
Balbino Daniel de Paula, Pai Balbino de Xangô. O Obaràyí, que é tido por muitos
como a maior autoridade do candomblé atualmente, contribuiu para a iniciação de
um neto de santo seu, dentro do tradicional Terreiro Aganju, em Lauro de
Freitas, no final do ano passado.
Mas
antes de dar um pulo na RMS para explicar o que acontece, procurei saber do
ogan Nilo Cerqueira, reconhecido pesquisador do culto a Exu, o que aconteceu lá
atrás que fez o orixá ficar pra trás na preferência de terreiros e iaôs.
Segundo ele, para entender a situação, é preciso viajar aos primórdios do
candomblé, religião formada no Brasil a partir de tradições religiosas de povos
iorubás da África.
“Ele
surge a partir de uma reorganização social de homens e mulheres negras
escravizadas, e surge como forma de resistência e de preservação de liturgias e
procedimentos ritualísticos originados em território africano especificamente
no centro oeste africano, nos territórios do povo Bantu inicialmente e
posteriormente Daomé, e por fim na costa oeste na região do território Iorubá e
do Benin”, contextualiza.
Nilo
lembra que nesse processo inicial, a partir do século XVII, foram necessários
alguns movimentos e articulações políticas que dessem conta de manter a
preservação do culto sem a perseguição imposta pela Igreja Católica e pela
aristocracia/burguesia desses períodos. “E a partir disso a gente vai ver uma
justaposição ou correlação entre santos católicos, inquices, voduns, e
particularmente os orixás, e nessa espécie de taxonomia os orixás foram sendo
aproximados aos santos católicos”, destacou ele, que também é militante do
movimento negro.
Dessa
forma, na Bahia, Ogum ficou sincretizado como Santo Antônio, Oxóssi como São
Jorge, Omolu e Obaluaiê como São Roque e São Lázaro, Oxumarê como São
Bartolomeu, São João / São Jerônimo / São Pedro como Xangô, Nossa Senhora da
Conceição da Praia / Santa Luzia / Nossa Senhora das Candeias como Oxum, Nossa
Senhora Santana como Nanã, Cosme e Damião como Ibeji, Senhor do Bonfim com
Oxalá e, no final da tabela, Exu como o quê?
“Injustamente,
Exu foi sincretizado como o diabo e você pode imaginar que, naquela altura,
nenhum sacerdote gostaria de ter o seu terreiro associado ao diabo, mesmo
considerando não haver nenhuma relação que se possa estabelecer de comparação
entre eles”, conclui o ogan.
Raridades
A
capital baiana possui, aproximadamente, 2.700 terreiros. Desses, 1.165 estão
presentes no projeto de Mapeamento dos Terreiros de Candomblé de Salvador, uma
ação lançada em 2006 pela Prefeitura, com a participação de órgãos
governamentais (incluindo a Fundação Palmares) e outras entidades, executada
pelo Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia (CEAO).
Na listagem, há apenas quatro terreiros de Exu, três deles de nação Keto e um
de nação Keto Jêje.
Este
último, de nome não informado, está indicado no Alto das Pombas, sob a
liderança da ialorixá Claudilene dos Santos de Jesus, enquanto o Ilê Axé Ejê
Onan, do pai Robinson dos Santos Lopes, fica na região da Avenida Centenário; o
Ilê Axé Odé Tolá, de pai Paulo Roberto José de Oliveira, também é perto, na
Federação, enquanto o Ilê Axé Ogum Lonã, de mãe Albertina dos Santos Carvalho,
está no subúrbio de Marechal Rondon.
Quando
for atualizada, a lista deve ganhar um novo terreiro de Exu, filho do Ilê Axé
Opô Odé Ibô, de Cassange, comandado por Urandi Vasconcelos, o Pai Uran.
Iniciado em Oxóssi por Pai Balbino de Xangô há cerca de 15 anos, foi Pai Uran
quem consagrou, em setembro do ano passado, Rafael do Nascimento Araújo, 29
anos, como filho de Exu.
A
raridade da situação ficou demonstrada na reação de Pai Uran ao jogar os búzios
e descobrir o orixá de seu filho. “A surpresa foi tanta que chamei os ogans da
minha casa, que confirmaram”, relembrou, quando conversamos em setembro
passado, no Terreiro Aganju.
A
partir daí, foi só uma questão de tempo, e de confirmação junto a Pai Balbino,
a quem pediria auxílio na condução do processo.
“É
uma oportunidade que eu abracei com muito amor e carinho, primeiro pelo
respeito do meu pai de santo quando ele disse 'traga e faça aqui', e eu entendi
que ele, ao mesmo tempo, queria ensinar, porque a gente não sabe tudo. Ele é o
meu sacerdote, e não existe ninguém melhor para compreender do que ele”,
comentou Pai Uran.
“Isso
para mim representou um carinho muito grande da parte dele comigo. Eu sou o
segundo filho de santo a trazer iaôs para serem iniciados assim. Às vezes não
acredito no que está acontecendo. Estou terminando um curso de História, e fico
conversando com sacerdotes do Brasil afora, e digo sem medo de errar: estamos
diante da maior autoridade do candomblé no Brasil, sem dúvida. Então, pra mim
às vezes eu fico sem palavras pra explicar qual o sentimento que eu estou
tendo, mas é gratidão”, complementou Pai Uran, sobre a abertura de Pai Balbino
para as iniciações.
O
mais ‘celebrado’ do trio, filho de Exu, seria o segundo na casa, feito há cerca
de 25 anos, em uma ação pioneira e tão rara quanto agora, quando Pai Edgar de
Exu, do Ilé Asé Barabo, em Camaçari, recebeu o axé transmitido pelo Obaràyí.
• Rafael de Exu
Rafael
do Nascimento Araújo, prestes a comandar uma casa consagrada a Exu, admitia
certo nervosismo na largada do processo de iniciação, concluído em setembro.
Mas contou que Pai Uran conseguiu mantê-lo firme, mesmo diante da grande
responsabilidade. “Me sinto grato por ele ter me dado esse axé, essa fortaleza.
Me fez me manter mais firme, equilíbrio mental, e eu deixei fluir, me deixei
levar. Fiquei um pouquinho nervoso, o que é normal de todo iniciado, mas fiquei
mais tranquilo ouvindo conselhos dele, de meu avô [Pai Balbino], tendo uma
preparação melhor para que acontecesse tudo nos conformes”, nos contou, ainda
durante as obrigações na casa.
Sobre
o receio de sofrer preconceito por conta do orixá que o escolheu, disse não se
preocupar. “Até agora não sofri nenhum [preconceito], mas se sofresse também,
me manteria forte, porque a gente sente a energia que a gente traz”.
Sobre
a raridade de sua iniciação, também não acha que seja algo tão diferente do que
ocorre com os demais. “Eu acho que não diferencia tanto. Talvez seja uma
raridade. Fiquei surpreso também porque eu não escolhi o orixá, foi Exu que me
escolheu, mas acho que não é tão diferente dos outros porque a energia é uma
só”, assinalou Rafael.
• No mesmo barco
A
iniciação de Exu no Aganju seria, conforme as revelações, com outros dois iaôs,
um de Oxum e, para surpresa geral (exceto para Pai Balbino), outra de Iansã.
“Seriam dois, Exu e Oxum. Só que quando meu pai falou, no início, ele disse
'vamos fazer o de Exu aqui. Você faz o primeiro aqui, e os outros você vai na
sua casa'. Só que no dia que eu vim aqui (no Aganju), e que ele (Pai Balbino)
viu a menina de Iansã, e ele disse que era para fazer junto. Ela não parecia
preparada. Aí no dia seguinte eu fui lá nos pés de Oxóssi, o patrono da minha
casa, e ele respondeu o seguinte: 'Exu só viria se Oxum viesse com ele'. E aí
ele falou que seriam três, e eu corri pra arrumar a menina de Iansã”, contou
Pai Uran.
A
menina de Iansã era a acadêmica de Direito Ane Fiúza, 34, que também considerou
sua iniciação uma surpresa. “Foi maravilhoso, muito gratificante. Meio nervosa,
natural, até porque é de suma importância passar por esse processo. Mas fiquei
em paz e me entreguei, deixei acontecer, como deve ser”.
Como
foi também para Pedro Oliveira dos Santos, 26, iaô de Oxum. “Para mim foi uma
grande realização. Era um sonho que eu almejava muito, no decorrer de alguns
anos, e estou muito grato ao meu babalorixá, ao meu avô. Eu sempre senti a
energia de Oxum próxima a mim e sempre acreditei que ela fosse o orixá que me
regia. Estou muito feliz, muito grato", contou ele, que entrou no mesmo
barco.
• Pai Balbino pioneiro
Babalorixá
mais respeitado na Nação Ketu, mas também em outras nações dentro e fora da
Bahia, Pai Balbino de Xangô é um dos últimos filhos de santo de Mãe Senhora,
lendária ialorixá do Ilê Axé Opô Afonjá, e tem uma ancestralidade que vem da
Ilha de Itaparica, do culto de Babá-Egum, com filhos e netos de santo em
muitíssimos terreiros.
Quando
a coluna esteve no Aganju, para entrevistá-lo, o sacerdote lembrava de apenas
três casos de pessoas feitas de Exu na Bahia: uma filha de santo do finado
Manuel Rufino de Souza, do Beiru; outra citada em um livro de Carybé e, por
fim, seu filho, Edgar de Exu, sobre o qual faz referência na fala a seguir.
“As
pessoas confundem Exu com o mal, mas ele não é o mal. Exu é um mensageiro dos
orixás. Há 25 anos, eu raspei um rapaz aqui, primeiro da minha geração que ouvi
falar que foi feito aqui no Aganju. Chama-se Edgar. Foi o primeiro, é um grande
pai de santo, tem um grande terreiro de candomblé”, conta Pai Balbino.
“E
agora esse jovem, meu neto de santo. Ele é filho de santo do meu filho de santo.
E por ele estar abrindo o terreiro dele, me pediu se ele deixava eu fazer o
santo dele aqui; eu disse que ‘as portas estão abertas e você é filho do axé’.
A única coisa que eu posso fazer é lhe dar um apoio aqui dentro”.
E
como tudo foi dado de bom grado, consagrado, o orixá abriu caminho com seu Opá
Exu (ou ogó), um bastão de búzios e cabaças, em formato fálico, que representa
a fertilidade, e que serve tanto como arado para retirar os preconceitos da
passagem, quanto o nascimento de novas ideias, de um novo tempo. Que o orixá
guardião dos templos, das encruzilhadas, das passagens e das casas, da
mobilidade, das pessoas e das cidades, mensageiro divino dos oráculos, tenha
cada vez mais ampliada suas homenagens, seus espaços e seu respeito. Laroyê!
Fonte:
Correio
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