Inclusão no ensino
superior é desafio para pessoas autistas
O
universitário Silvano Furtado da Costa e Silva, de 23 anos, estava no 8º
período da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), quando teve
seu diagnóstico de autismo, em 2020. Neste domingo (2), é lembrado o Dia
Mundial de Conscientização sobre o Autismo.
"No
primeiro ano da pandemia, eu tive várias questões psicológicas, passei por
alguns tratamento e tive meu diagnóstico de autismo. Fiquei um pouco
vulnerável. Em uma reunião aberta entre os alunos e a representação discente da
faculdade, eu disse à época que eu não pisaria nesse prédio novamente depois de
pegar meu diploma, caso a faculdade não mudasse a forma como lida com seus
alunos neurodivergentes.”
A
manifestação de Silvano fez com que ele fosse convidado a integrar a
representação dos estudantes. “Assim, começamos a desenhar uma política de
avaliações alternativas de acessibilidades pedagógicas dentro do Largo de São
Francisco [local da faculdade]”, contou.
O
universitário colaborou na construção da Política de Acessibilidade Pedagógica
(PAP) da Faculdade de Direito da USP, uma das mais antigas e tradicionais do
Brasil. A PAP, implantada em agosto de 2022, é direcionada aos alunos
diagnosticados com transtornos globais do desenvolvimento, como o transtorno do
espectro autista (TEA).
“A
São Francisco é a única faculdade pública do Brasil a ter uma política assim, o
que por si só é genial, pois tais normas, se cumpridas, dão conta de realizar a
inclusão. Mas, ao meu ver, o grande mérito dessa política foi ter atuado contra
a invisibilização de pessoas autistas no mundo acadêmico e colocado o debate na
mesa acerca da neurodiversidade”, aponta Guilherme de Almeida, presidente da
Associação Nacional para Inclusão das Pessoas Autistas (Ania/BR).
Para
o pesquisador, a Política de Acessibilidade Pedagógica é um potente regulamento
em prol da garantia de direitos das pessoas neurodivergentes. Guilherme lembra
que a PAP representa o cumprimento da Lei Brasileira de Inclusão, da
Constituição Federal de 1988, e dos tratados internacionais de que o Brasil é
signatário, em especial a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência de Nova York.
Segundo
dados mais recentes do Censo da Educação Superior, de 2021, no Brasil, estão
matriculados em cursos de graduação presenciais e a distância 4.018 pessoas com
transtorno global do desenvolvimento (TGD). O transtorno do espectro autista
(TEA) é um dos cinco tipos do TGD. Sendo assim, todos aqueles que têm algum
grau de TEA possuem um TGD.
O
censo é realizado anualmente pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira (Inep), instituição vinculada ao Ministério da
Educação.
• Política
“A
Faculdade de Direito do Largo do São Francisco, como sendo a primeira faculdade
do Brasil, teria que, em termos de tradição, mostrar que é possível quebrar o
‘antiquadrismo’. Então começamos a trabalhar”, relembra Silvano.
A
PAP estabelece que os alunos que necessitem de atendimento pedagógico
diferenciado poderão solicitar previamente adaptações de provas e demais
atividades avaliativas e tempo adicional, local reservado ou assistência para
realização das provas. Considerando as legislações brasileiras de inclusão, a
política visa “superar limitações ordinárias e promover adaptações razoáveis
destinadas a garantir condições de desempenho acadêmico”.
Para
Silvano, a política é um dos passos para a inclusão das pessoas com o espectro
autista. “É um elemento de permanência, existem outros, como o elemento
avaliativo, que é necessário para terminar o curso. Mas eu creio que existem
outras iniciativas que a gente ainda precisa lidar, por exemplo, o relacionamento
discente. A gente sempre fala da relação professor-aluno, que é uma relação de
poder, que pode ser conflituosa, mas existem conflitos horizontais entre os
alunos, como o bullying, que para pessoas autistas é algo complicado, que nos
atinge”, explica.
Para
ele, a maior barreira ainda são as atitudes das pessoas com os autistas. “Não
são barreiras de engenharia. Dependem de mudanças de atitudes, as pessoas têm
mais dificuldades de mudar atitudes do que o formato de um prédio”, acrescenta.
Silvano tem esperança de que as gerações futuras possam ser, de fato, incluídas
no ensino superior.
“Espero
que o número que a USP como um todo tem, de tão poucas pessoas com deficiência,
se reverta em uma mudança real, que pessoas ocupem essas cadeiras e se sintam
confortáveis em ocupar essas cadeiras, em ir à aula, em falar, em ser elas
mesmas, sem o medo de serem ridicularizadas, sem o medo de serem tratadas como
seres humanos de baixa qualidade, essa é uma das minhas esperanças.”
Ele
ainda está indeciso em qual área do direito vai atuar quando se formar. “Tenho
duas áreas em mente, a primeira é criminologia e a segunda é direito digital,
para não abandonar essa minha aptidão com a computação.”
O
universitário explica que o direito não foi sua primeira opção. “Estava no meio
do processo seletivo do Consulado do Japão para tentar ciências da computação
na Universidade Imperial de Tóquio até que eu decidi que não queria mais o
curso, nem ir para Tóquio. Decidi que queria direito e como é um curso que
radica muito nacionalmente, acabei optando pela USP como primeira e a melhor
opção”, conta.
• Inclusão com humanização
“A
grande beleza de se discutir inclusão é que você não pode fazer isso de modo
sectarista, identitário, afinal só se inclui envolvendo o todo”, afirma
Guilherme de Almeida, presidente da Ania/BR, que também é pesquisador de
educação inclusiva na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Ele tem 40
anos e se descobriu autista aos 37.
Guilherme
explica que existem várias dificuldades que as pessoas autistas enfrentam para
acessar o ensino superior.
“A
começar pelo vestibular que não avalia de forma adequada e justa as habilidades
e os conhecimentos dos alunos, pois se baseia em um único teste padronizado. A
forma como autistas pensam e processam informação é absolutamente diversa do
modo como pessoas não autistas o fazem.”
Outra
barreira, segundo o presidente, “está em uma ideia contida na famosa frase ‘mas
se você chegou até aqui, você não precisa de adequações’". "Para mim,
isso supera a ignorância e beira o criminoso. Qualquer professor universitário,
com o mínimo de sensibilidade, compreende o quão desafiadora uma faculdade pode
ser para qualquer pessoa. Ansiedade e depressão, transtornos alimentares, abuso
de substâncias, síndrome de Burnout são apenas alguns exemplos da realidade nas
universidades. Se isso já é complicadíssimo para qualquer pessoa, para
indivíduos autistas tem um potencial destrutivo muito maior, vale lembrar que o
suicídio é a maior causa de morte não natural entre pessoas autistas”, alerta.
Para
o representante da Ania/BR, falta humanização para que haja, de fato, a
inclusão de pessoas com deficiência no ensino superior. “A inclusão visa criar
um ambiente onde todas as pessoas possam participar e se sentir bem-vindas.
Para haver inclusão, falta humanização, falta comprometimento no
desenvolvimento ético e social, falta partilha, falta união. Acessibilidade é
ferramenta, inclusão é ‘inédito viável’, como queria Paulo Freire.”
• Direito à diferença
Durante
a última semana, a Faculdade de Direito da USP sediou o 2º Simpósio
Internacional de Inclusão no Ensino Superior - O Direito à Diferença. Promovido
pela Ania/BR, o evento reuniu especialistas de universidades de diversos países
e pessoas com deficiência em mesas-redondas e palestras sobre o autismo e sua
relação com a sociedade brasileira.
Presente
no evento, o professor César Nunes, titular de filosofia e educação na
Faculdade de Educação da Unicamp, falou sobre a pedagogia humanizadora como
instrumento de inclusão das diferenças. “Os autistas não encontram no conjunto
das pessoas com deficiência nenhuma política especial de acesso e de garantia
da qualidade humanizada e de permanência na instituição”, afirmou o professor,
em entrevista à Agência Brasil.
Ele
explica que no ensino superior brasileiro há dificuldade de acesso para as
pessoas autistas e, de modo geral, para as pessoas com deficiência. “O acesso é
diferente às universidades públicas e universidades particulares. As
universidades públicas mantêm uma tradição um pouco mais rigorosa e muitas
vezes é extremamente excludente, e as universidades particulares, com suas
diferenças, têm um modelo de ingresso mais voltado para a questão econômica,
comercial, flexibilizando o processo seletivo, mas ao mesmo tempo,
mercenalizando o processo formativo.”
Para
Nunes, a sociedade brasileira precisa superar as marcas e os preconceitos
históricos. “Quando a sociedade for mais democrática e acessível, as
instituições educacionais e escolares também o serão. As políticas públicas de
acesso ao ensino superior deverão apropriar-se das características jurídicas,
filosóficas, pedagógicas e democráticas da Constituição brasileira para
promover uma educação onde haja espaço e lugar para todos. E as políticas de
inclusão deverão considerar a especificidade da condição do autista”, opina.
O
professor explica que a pedagogia, por sua natureza, já é um instrumento de
inclusão das diferenças. “A pedagogia é uma ciência múltipla que trabalha as
diversas dimensões do ato educativo, ela já deveria ser inclusiva, porque a
pedagogia consiste em buscar compreender a condição humana, que é diversa em
cada ser humano, e a partir da diferença, da diversidade, promover a inclusão e
a permanência digna e humanamente qualificada de todos”, afirma o especialista.
Autismo sem tabu: “escolas precisam
conhecer as necessidades de cada criança”, diz psicopedagoga
Dificuldade
dos profissionais de educação em relação ao comportamento de estudantes, falta
da adequação curricular e falta de profissionais qualificados para o acompanhamento
individualizado. Esses são os desafios rotineiros da educação escolar de
pessoas incluídas no espectro autista, segundo a neuropsicopedagoga Cindy
Dephany de Andrade Rosa. “É preciso considerar as individualidades, conhecer as
necessidades da criança, reforçadores, possíveis gatilhos para crises,
limitações e potencialidades”, explica. A especialista concedeu entrevista para
a Agência de Notícias Ceub sobre o tema. Confira abaixo:
• Como funciona a adaptação de quem tem
autismo na escola?
Cindy
Adrade – Depende. É preciso considerar as individualidades, conhecer as
necessidades da criança, reforçadores, possíveis gatilhos para crises,
limitações e potencialidades.
Para
isso, é necessário realizar uma reunião com os responsáveis para coletar informações,
investir em vínculo com os profissionais de referência, realizar uma avaliação
diagnóstica para entender o nível geral da criança e assim montar a sua
adequação curricular e construir o PEI (plano educacional individualizado).
• Quais são as maiores dificuldades no
cotidiano?
Cindy
Andrade – Dificuldade dos profissionais de educação em relação ao manejo de
comportamento.
Realização
da adequação curricular e falta de pofissionais qualificados para
acompanhamento individualizado.
• Quais obstáculos encontrados na
socialização?
Cindy
Andrade – Preparar um ambiente realmente inclusivo, com conscientização sobre
respeito as diferenças para todo o corpo discentes e docente, onde o aluno faça
parte da rotina e das atividades propostas e que não esteja somente inserido em
contexto escolar.
• Como o transtorno influência no
desempenho escolar?
Cindy
Andrade – Depende. Cada criança é única e essa avaliação deve ser feita caso a
caso, considerando suas limitações e potencialidades ou ainda se existem
comorbidades ou excepcionalidades associadas ao TEA.
• Costuma existir certa rejeição por parte
das escolas no momento da matrícula?
Cindy
Andrade – Embora a inclusão seja um direito garantido por lei, infelizmente
algumas instituições ainda se dizem despreparadas para acolher indivíduos com
TEA e em alguns casos negam a vaga ao saber do diagnóstico com argumentos como
limite de vagas.
Fonte:
Agencia Brasil/Jornal de Brasília/Agência de Notícias CEUB
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