Avanço do
extremismo está ligado a aumento de ataques a escolas; 1º caso foi em Salvador
Às
7h30 da manhã, em uma aula de Matemática, duas amigas de apenas 15 anos foram
assassinadas por um colega de turma. O adolescente de 17 anos havia levado uma
arma do pai adotivo, que era perito da polícia técnica, para a escola. À
comunidade de pouco mais de 250 estudantes do Colégio Sigma, que ficava em
Jaguaribe, além de professores e funcionários, restou o trauma daquele 28 de
outubro de 2002.
O
trágico episódio em Salvador inaugurou uma marca indesejada pelo Brasil: foi o
primeiro ataque de extrema violência a uma escola no país. Desde então, em 21
anos, foram pelo menos 23 casos de instituições de educação atacadas. Nada se
compara, contudo, ao recrudescimento dos últimos tempos, que preocupa
comunidades escolares, além de pesquisadores e autoridades.
Ao
menos 10 destas escolas foram vitimadas nos últimos nove meses - a última foi
na segunda-feira (27), quando agressor de 13 anos matou uma professora, em São
Paulo. Para estudiosos do tema, esse crescimento está ligado ao avanço do
extremismo no país.
Os
dados fazem parte de uma pesquisa ainda inédita desenvolvida pela advogada Cleo
Garcia, em sua dissertação de mestrado na Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp), e orientada pela professora Telma Vinha, docente da instituição e
coordenadora do grupo Ética, Diversidade e Democracia na Escola Pública.
De
acordo com Cleo, há muitos fatores que contribuem para o aumento das
ocorrências. Um deles seria o processo de adoecimento mental e emocional
relacionado à pandemia da covid-19.
"Os
adolescentes se viram em isolamento e vivências em mundos virtuais, muitas
vezes tendo que conviver com violências dentro da própria família. Tiveram
muito acesso a chats, fóruns, comunidades e jogos virtuais. Então, adolescentes
que já vinham de algum tipo de sofrimento na escola (bullying, exclusão,
humilhação), acabaram encontrando acolhimento nessas comunidades online,
através de discursos extremistas", diz.
O
alerta não é de hoje. No final do ano passado, integrantes do grupo de trabalho
da área de educação do governo de transição Lula-Alckmin elaboraram um
relatório técnico sobre o extremismo de direita entre adolescentes no Brasil,
ataques a escolas e alternativas para a ação governamental.
Uma
das autoras do documento, a professora Catarina de Almeida, da Faculdade de
Educação da Universidade de Brasília (UnB), também enfatiza a ligação entre o
crescimento de células nazistas e o avanço do extremismo no país para a
cooptação de crianças e adolescentes através da internet. Ela explica que, após
o primeiro caso, em 2002, os eventos de violência começam a se tornar mais
frequentes a partir dos anos 2010.
"A
gente não tem um crescimento de casos descolado das questões que a gente está
vivenciando na sociedade. O crescimento do extremismo, ou do conservadorismo,
cresceu a partir dos anos 2000 no mundo e os ataques às escolas vêm muito nesse
sentido", diz Catarina.
No
Brasil, especificamente, ao mesmo tempo que começam a existir políticas,
movimentos e organizações de combate às desigualdades raciais, de gênero, de
orientação sexual e de diversidade em geral, há reações contrárias a esses
avanços.
"Não
coincidentemente, é quando você começa a ter discursos de ódio no parlamento.
Começa a se normalizar discursos de extremismo, antifeministas e contra
políticas de combate ao racismo", acrescenta Catarina.
• Planejamento
Na
Unicamp, a pesquisa da advogada Cleo Garcia e da professora Telma Vinha começou
no ano passado, após os procedimentos para acompanhamento das vítimas diretas e
indiretas do caso de Aracruz (ES). Em novembro de 2022, um adolescente de 16
anos matou quatro pessoas e feriu outras 12 em duas escolas na cidade. De
acordo com ela, estão sendo analisadas situações que aconteceram em todo o país,
desde que envolvam tentativas de crime contra a vida e que tenham sido
planejadas ou intencionais.
"As
armas são variadas - facas, besta, coquetel molotov, armas de fogo - e envolvem
estudantes e ex-estudantes. Por isso, nosso foco principal, ainda que não
exclusivamente, é a escola. Por que a escola? Qual o significado a escola tem
para eles?", conta.
Ao
todo, os episódios envolveram 16 alunos e 12 ex-alunos - o total é maior do que
o número de ocorrências porque, em três eventos, os atiradores agiram em
duplas. As idades variaram entre 10 e 25 anos, enquanto 12 deles usaram armas
de fogo. Dentre esses últimos, ao menos metade teve acesso à arma na própria
casa. O perfil é predominantemente de homens jovens brancos.
"Um
ataque desse tipo não ocorre de maneira imprevista ou de uma hora para outra. O
estudo tem comprovado que todos passam por um período de planejamento",
adianta Cleo.
Em
geral, eles anunciam os ataques com antecedência. Isso pode acontecer tanto
através de postagens em redes sociais quanto em conversas com pessoas próximas,
ameaças em discursos, mudanças de comportamento, isolamento e discursos de
ódio. Para Cleo, é preciso refletir como a sociedade tem deixado passar essa
radicalização sem tentar uma reversão. A pesquisadora reforça que a escola e a
família devem ser espaços de acolhimento, mas o estado precisa de políticas
públicas específicas.
• Disseminação
A
arma utilizada pelo adolescente que cometeu um ataque contra o Colégio
Municipal Eurides Sant'Anna, em Barreiras, no Oeste baiano, em setembro do ano
passado, era do próprio pai - este, por sua vez, um policial. Na época, o
genitor declarou, em depoimento, que acreditava que o filho não sabia onde o
revólver ficava escondido em casa.
O
atirador - que ficou tetraplégico após ser baleado por uma pessoa não
identificada - costumava fazer publicações de cunho racista e xenofóbico em
suas redes sociais. Muitas das postagens eram de ódio contra os baianos. Além
disso, até mesmo as inteligências artificiais têm sido utilizadas como ferramentas
para disseminar mais o extremismo.
"A
naturalização dessas manifestações de ódio nos espaços públicos com o avanço do
crescimento da internet possibilita a disseminação do ódio, com mais acesso da
juventude também à internet. Temos uma internet sem controle, sem
regulamentação", diz a professora Catarina de Almeida, da UnB.
Os
grupos extremistas atacam justamente mulheres, pessoas negras, pessoas gordas,
com deficiência e minorias em geral. No caso de Barreiras, a vítima fatal foi a
estudante Geane da Silva Brito, 19 anos, que era cadeirante. Os crimes de ódio
são, portanto, contra as diferenças, de acordo com a professora.
Catarina
e os outros autores do relatório encaminhado ao governo federal já tinham
alertado que o início do ano letivo em 2023 exigiria políticas específicas para
combater o problema, porque provavelmente haveria novas tentativas de ataques a
escolas. Além do caso da segunda-feira e de outro na cidade de Monte Mor (SP)
em fevereiro, outras ameaças chegaram a ser abortadas pelas autoridades.
Nos
Estados Unidos, onde os eventos de violência extrema contra escolas são muito
mais comuns, já houve ao menos 131 tiroteios em massa apenas este ano. Ao mesmo
tempo, nos últimos anos, no Brasil, houve um aumento do incentivo à política de
armamento, assim como de clubes de tiro. O extremismo aumentou até mesmo em
algumas vertentes religiosas, que têm crescido vertiginosamente o alcance com
suas igrejas.
"Quando
tem um caldeirão como esse, o que esperar como resultado? Não pode ser coisa
boa. Não tem uma única solução, como também não tem uma única explicação. As
pessoas querem respostas fáceis para aquilo que não é uma questão fácil",
pondera a professora.
• Misoginia
Em
geral, o discurso masculinista está presente na maioria dos ataques, uma vez
que a misoginia e o racismo são alguns dos principais motivadores. O homem que
cometeu o ataque à escola em Realengo, no Rio de Janeiro, em 2011, por exemplo,
fazia parte da "machosfera", um ecossistema que inclui desde os
masculinistas e os incels ("celibatários involuntários”, na sigla em
inglês) até os red pills, que pregam a submissão das mulheres aos homens e que
foram alvo de críticas e discussões nas últimas semanas.
Não
é incomum que as mulheres sejam alvos frequentes nesses ataques. No caso de
Realengo, foram dez meninas mortas e dois meninos mortos. Há mais de uma
década, a professora de Literatura em Língua Inglesa na Universidade Federal do
Ceará (UFC) e blogueira feminista Lola Aronovich denuncia o caráter misógino do
massacre, além da ligação entre esses atentados e esse ecossistema.
De
acordo com ela, a misoginia serve como uma porta de entrada na internet: ou
seja, é usada como uma estratégia de recrutamento em grupos neonazistas pelo
mundo.
"Um
garoto entra numa comunidade gamer, por exemplo, e lá começam a testá-lo, a ver
como ele reage à misoginia, ao racismo, à homofobia. Quando ele estiver mais
radicalizado, será convidado para outro grupo mais exclusivo, mais abertamente
extremistas. Eles são inclusive treinados para atacar mulheres", explica.
Esse
treinamento vai desde descobrir dados pessoais e colocar o nome e telefone da
vítima em sites de prostituição e swing até cometer um ataque ainda maior.
"O objetivo é aos poucos convencer o garoto a dar a sua vida pela 'causa'.
É ele cometer um atentado, matar o máximo de meninas e mulheres, e depois se
matar ou ser morto pela polícia. Aí ele já vira um herói pros grupos misóginos,
pronto para inspirar novos 'heróis", acrescenta.
Com
o racismo, é semelhante: o adolescente que atacou a escola na última
segunda-feira, por exemplo, havia sido racista com um colega dias antes e
repreendido pela professora que foi morta. Lola lembra que o menino já
participava de grupos de ódio e vinha planejando o atentado.
"A
linguagem e o comportamento muitas vezes expõem esse ódio. Se um adolescente
idolatra símbolos nazistas ou Hitler ou mesmo faz parte de grupos que odeiam
mulheres, é sempre um péssimo sinal. Quer dizer que ele já está
radicalizado".
Por
isso, ela reforça que os pais precisam acompanhar o que os filhos veem e fazem
na internet, além de conversar com eles. "Se uma criança ou adolescente já
começa a se revelar machista ou racista, é preciso apontar como isso é errado.
Isso tanto em casa quanto na escola. No caso do adolescente de 13 anos, uma
semana antes ele havia chamado um colega negro de 'macaco'. O que foi feito a
respeito, além de separar a briga?", questiona.
• Significado
Escolher
a escola para um ataque não é algo aleatório, nem coincidência. Em seu estudo,
a pesquisadora Cleo Garcia, da Unicamp, identificou que há algumas diferenças
entre alguns ataques. Alguns episódios podem ser motivados principalmente por
vingança ou raiva - isso inclui desde ciúmes ou algum castigo na véspera ao
bullying. Ela cita que um dos casos em que isso aconteceu foi o de Morro do
Chapéu, no Centro-Norte baiano, também em setembro do ano passado, quando um
aluno tentou atear fogo aos colegas por ter sido suspenso.
De
outro lado, para ela, ficam os adolescentes que já são usuários da subcultura
extremista, ainda que tenham vivências negativas da escola. Esses, por sua vez,
tentariam fazer o maior número de vítimas e teriam articulação com o que ela
chama de comunidades mórbidas - dos fóruns da deep web (a parte da web que não
é indexada por mecanismos de buscas) que disseminam discursos de ódio e atos de
violência livremente à superfície da web (ou seja, a parte da conexão que é
acessível por todos e que inclui redes sociais como Whatsapp, Telegram e
Twitter).
"A
escola é um local de muito significado para esse adolescente, mesmo que de modo
ruim, de decepção e sofrimento. Ele retorna para uma vingança, para ser
reconhecido e obter fama entre os pares que talvez o tenham desprezado, num
local onde gostaria de fazer parte e ter sido acolhido", diz Cleo.
Além
disso, por "escola", deve-se entender das instituições de ensino
básico à pós-graduação, como ressalta a professora Catarina de Almeida, da UnB.
Segundo ela, a escola é este espaço de formação de sujeitos diversos. Ela se
torna um alvo também por ser aquela que seria capaz de combater o extremismo.
Há, ainda, o fator de choque por ser um lugar com muitas crianças e
adolescentes, onde há entendimento de que elas estão em segurança.
"A
escola é o espaço de maior encontro dessas diferenças e que a gente tem que
conviver por muitos anos. São muitos anos da nossa vida na escola e que bom que
a gente não escolhe quem vai estar lá com a gente, sobretudo na escola pública.
Se a escola não pode debater essas questões, onde vai debater isso?",
argumenta, citando casos de escolas e profissionais que tentam abordar a
diversidade mas são cerceadas até pelo poder legislativo.
• Sinais
Não
é justo, porém, para Catarina, deixar a responsabilidade para que a escola
solucione esse problema. As instituições educativas, na avaliação da
professora, são parte da solução, mas, para isso, devem poder "ser
escola". Ou seja: devem ser locais de criatividade e para debate,
inclusive de questões psíquicas.
No
auge da pandemia da covid-19, especialistas já alertavam que seria necessário,
no mínimo, um trabalho conjunto entre educação, saúde e assistência social no
retorno às aulas presenciais. A ideia seria acompanhar a saúde física e
emocional dos estudantes para, a partir disso, desenvolver projetos pedagógicos
que pudessem apoiar as necessidades desse novo contexto.
"Mas
voltamos para as escolas com as turmas mais lotadas, sem nenhum projeto. As
professoras voltam adoecidas, porque o magistério é eminentemente feminino e
elas estão sujeitas a todas essas violências, inclusive de sobrecarga",
pontua.
A
pesquisadora Cleo Garcia, da Unicamp, também acredita que a responsabilidade é
geral. Com professores sobrecarregados, as políticas públicas integradas são
ainda mais urgentes. "A cooptação passa pelo afeto que o adolescente
desenvolve com os extremistas, mesmo que seja pelo ressentimento. Afeto,
acolhimento e escuta, se aplicadas rotineiramente pelos familiares e escola, já
seriam uma grande barreira para o desenvolvimento desse tipo de
comportamento".
• Artefatos de segurança não reduzem risco
e pioram a situação, dizem especialistas
No
documento elaborado pelo grupo de trabalho de educação para o governo de
transição no ano passado, há sugestões como o monitoramento constante de grupos
extremistas em ambientes virtuais por profissionais de segurança, além de uma
campanha de denúncia à cooptação dos jovens por grupos de extrema direita.
No
relatório, eles reforçam que a implementação de artefatos de segurança, como
detectores de metal e catracas, não apenas não enfrenta o problema como pode
até estimulá-lo, já que afetará o ambiente escolar, tornando-o mais insalubre.
Um
dos coordenadores do grupo, o professor Daniel Cara, da Faculdade de Educação
da Universidade de São Paulo, lembra que essas ferramentas não reduziram o
número de casos nos Estados Unidos, onde os casos são ainda mais recorrentes.
“No
Brasil, propusemos na transição governamental monitoramento de comunidades
virtuais em plataformas, comunicadores e redes sociais de internet, protocolos
de segurança, formação para comunidades escolares e campanhas sobre o perigo do
extremismo de direita e do discurso de ódio entre adolescentes e jovens”,
afirma ele, que é dirigente da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.
A
professora Catarina de Almeida, da UnB, reforça que, se o processo é múltiplo,
é necessário envolver grupos multiministeriais ou políticas intersetoriais.
"Temos que evitar não só que a escola seja atacada, mas combater a
cooptação dos adolescentes. Do contrário, você pode evitar que a escola seja
atacada, mas ele pode fazer no shopping, no aeroporto, na rodoviária. Por isso,
o que a gente precisa é combater os extremismos".
Na
última quinta-feira (30), foi divulgado que o ministro da Educação, Camilo
Santana, propôs a criação de um grupo intersetorial para tratar de ataques a
escolas, incluindo também prefeituras e governos estaduais. A assessoria do
Ministério da Educação (MEC) não respondeu ao pedido de mais informações quanto
à iniciativa.
A
Secretaria Municipal da Educação (Smed) informou que tem um núcleo, em sua
diretoria pedagógica, para discutir o tema. Nem a Secretaria da Educação do
Estado (SEC) nem o Sindicato dos Estabelecimentos de Ensino do Estado (Sinepe),
que representa as escolas particulares, responderam aos pedidos da reportagem.
Fonte:
Correio
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