Segundo
(o) bem-te-vi
Dias
depois do susto que o bem-te-vi tinha levado da água suja jogada janela afora
pela faxineira, voltou a assumir seu posto no galho que espiava para dentro do
quarto no andar de cima da casa. Era bom posto, não tanto pelo que se passava
no quarto, mas porque dava para observar os insetos que voavam no gramado e
entre as árvores. Ele tinha outro posto no lado de lá do gramado, mas que
ficava mais baixo e permitia ver os insetos que voavam sobre o gramado ou
pousavam na grama.
Não se
assustava mais quando o idoso senhor da casa, arquiteto conhecido e
reconhecido, autor do projeto de sua moradia, caminhava entre as árvores que
ele mesmo havia plantado quarenta anos antes. Os dois se conheciam, mas não se
cumprimentavam. O bem-te-vi saudava o sol da manhã, se alegrava com o grandioso
fato de estar vivo; o ancião caminhava entre as árvores que havia plantado, a
maioria frutíferas, que aos vinte anos já tinham vinte metros de altura.
Quando
a casa foi construída, havia um terraço, que se separava do mezanino por
seteiras fechadas com vidros blindados. Quando os bem-te-vis se assentavam no
terraço, viam suas figuras refletidas nos vidros: achavam que seu território
havia sido invadido. Chamaram parentes da vizinhança e, um a um, iam se jogando
contra o inimigo que estava dentro do vidro. Eram pancadas violentas,
acompanhadas de grunhidos raivosos, bem diferentes dos gritos álacres que deram
o nome ao pássaro. O arquiteto ouviu a barulheira, deu uma risada e colou
jornais nos vidros, até que ficasse pronta uma cortina que também impedia o
reflexo dos pássaros.
Ouvindo
ruídos no quarto do andar de cima, o nosso bem-te-vi voou até o galho ao lado
da janela e espiou para dentro do quarto. O velho amigo não estava mais lá. Em
compensação, dois amigos dele estavam armando as peças no jogo de xadrez, sobre
uma mesinha iluminada pela luz da janela. Eram os mesmos que costumavam
visitá-lo uma vez por semana, quando jogavam entre si, sendo substituído pelo
reserva aquele que havia perdido.
Quatro
castiçais sustentavam quatro velas grossas acesas pelos cantos da cama. Serviam
para defumar o ambiente, expurgar micróbios de doenças, acabar com
maus-olhados. O olhar agudo do pássaro notou que o centro de cada vela era
escuro: a luz provinha da escuridão. O bem-te-vi inclinou a cabeça, trocou de
lado para ver se não estava se enganando. A cama estava vazia, sem lençol ou
travesseiros. A fumaça das velas subia, rodeava a cama, percorria o teto. Um
cheiro forte impregnava o quarto.
O
bem-te-vi coçou o peito com o bico e viu que, lá embaixo, sobre a folha que
havia sido amarela e agora já estava marrom, uma lagarta gorducha e gostosa
caminhava sobre dezenas de pés. Deu um mergulho, pegou o inseto no bico,
repartiu-o em dois e daí engoliu um a um. Agradeceu à amiga folha por ter-lhe
servido o almoço como se prato fosse.
Ela
seguia o destino de se tornar adubo e promessa. Assumia tornar-se terra fértil,
esperando que em nova gestação pudesse tornar-se melhor. Vivia de esperança e
conformismo. Na agonia, servia de prato ao rival.
Para
ela, não fazia sentido dizer tu és pó e ao pó hás de retornar. Era época das
chuvas, não havia pó. Os egípcios, querendo preservar os corpos, haviam notado
a semelhança de cor e consistência entre músculos e barro. Do barro fazer pó
era dizer que bastava um sopro para se desaparecer, devendo o ouvinte grudar-se
ao pastor. O que vem do pó e ao pó retorna são a poeira, a vassoura e o
aspirador. Quem fosse apenas pó não ficaria de pé. Ficaria apenas prostrado,
sequer ajoelhado.
O
bem-te-vi voltou ao galho junto à janela. Dois amigos do falecido estavam
arrumando as peças de um jogo de xadrez posto sobre uma mesinha redonda
iluminada pela outra janela. Os três costumavam se reunir uma vez por semana
para colocar a conversa em dia, beber um vinho e jogar xadrez. Quem perdia
cedia o lugar para o parceiro que tinha ficado olhando e era chamado de
Kiebitz, um quero-quero a vigiar o pampa.
Os dois
remanescentes faziam uma homenagem ao falecido, como se o jogo fosse uma missa
fúnebre. A luz da janela batia no tabuleiro, os dois contendores estavam tão
concentrados no jogo que não percebiam nada mais ao redor. Era um jogo
indecente, em que o bispo podia comer a rainha ao lado da torre, um jogo tão
violento que ia acumulando cadáveres à beira do campo de batalha. Somente havia
paz quando se via o rei no cadafalso.
O
bem-te-vi conhecia os dois: já os havia visto muitas vezes. Quando o tempo
estava bom, jogavam debaixo das árvores, fruindo a brisa que passava. Eram
parceiros, antigos colegas de trabalho, amigos.
Enquanto
eles se digladiavam, o bem-te-vi ficou olhando a fumaça que saía das quatro
velas e viu que ela se juntava no alto, flutuava por cima da cama, configurando
um corpo, como se o falecido tivesse retornado em forma de ectoplasma, a espiar
o jogo dos amigos, olvidando que havia defuntado. Era como se, além do corpo,
houvesse um equivalente psíquico e, além desses dois, uma energia espiritual
que movesse todo o pensar, sentir, agir. Essa energia poderia, talvez, perdurar
por alguns dias, pairando no ar, aparecendo ou não para raras pessoas próximas,
mas também destinada a se desvanecer, como de uma lembrança se faz olvido.
Bem-te-vi
e ectoplasma cruzaram os olhares. O pássaro meneou a cabeça, como se estivesse
perguntando o que aquela fumaça ainda estava fazendo ali. O ectoplasma piscou
um olho, depois o outro, sorriu como se dentes tivesse. Tudo bem, não mais
sofria. Mas, se fosse espírita, teria de temer a longa viagem para os espaços
em torno da Terra, passar frio durante anos a fio, à espera da oportunidade de
ter abrigo no corpo quente de um recém-nascido.
O
defunto gostava mais de olhar o jogo dos outros em vez de jogar. Quando ele
próprio jogava, sentia-se tenso. O jogo era todo feito de armadilhas, astúcias,
prepotência e morte. Ele planejava o seu jogo para que um peão se tornasse
bispo, torre ou rainha. Querendo impor destino à história, perdia-se no
caminho. O destino do jogo não era promover proletários, mas matar o rei
inimigo.
O
ectoplasma se sentou no ar para ver melhor o jogo. Parecia que só o bem-te-vi o
via bem. Os dois jogadores estavam tão tomados pela política das peças que não
queriam ver o mais evidente e perder a concentração. Nada viam ao redor: o
mundo se reduzia às quatro linhas do tabuleiro. Fora disso, nada mais havia.
Quando
o bem-te-vi ouviu um jogador gritar “xeque!” com o júbilo do vitorioso, o outro
jogador, que havia previsto essa jogada e não alertara o adversário quanto à
burrada que ele estava prestes a fazer, moveu o rei e assim desencobriu torre,
ameaçando, ao mesmo tempo, o rei e a rainha do outro, forçando a troca da
rainha pela torre. Daí o jogo mudou de lado, quem parecia prestes a perder se
tornou implacável atacante, disposto a acabar com o outro. Não havia piedade.
Nem comiseração com a fraqueza. Tudo era vontade de vencer.
Com uma
lufada de vento que atravessou o quarto, as velas se apagaram, o ectoplasma se
desfez. Logo o jogo acabou, as peças foram recolhidas numa sacola, os jogadores
decidiram ir embora. A despedida havia se completado, nada mais havia a fazer.
Começou a chover devagar.
O
bem-te-vi voou até o seu posto de caça no outro lado do gramado. Havia notado
que fêmeas de cupim estavam em revoada. Comeu até se fartar. Não havia nele a
menor piedade pelos insetos devorados. Achava que estava fazendo um upgrade
deles. Afinal, se achava uma espécie superior, o que se provava e comprovava no
simples fato da devoração.
Fonte:
Por Flávio R. Kothe, em A Terra é Redonda

Nenhum comentário:
Postar um comentário