terça-feira, 9 de dezembro de 2025

Rebecca Solnit: Trump quer recriar uma América branca que nunca existiu

À medida que Donald Trump se deteriora e seu poder diminui, ele tem atacado furiosamente jornalistas mulheres e grupos étnicos, mais recentemente os somalis-americanos. Seus insultos surtem efeito devido à animosidade e ao poder que ele detém, não à sua veracidade. Da mesma forma, os ataques de sua administração contra imigrantes são descuidados e baseados em mentiras. É extremamente claro que o alvo não são indivíduos com antecedentes criminais. É qualquer pessoa culpada de ser parda. Indígenas americanos com carteiras de identidade tribal, cidadãos americanos, pessoas que realizam trabalhos essenciais, da construção civil à enfermagem, veteranos militares, estudantes universitários, pessoas que dormem em suas próprias camas, crianças pequenas: todos os tipos de residentes deste país estão sob ataque.

“As operações do ICE são cruéis, desumanas e não contribuem em nada para a segurança pública”, declara Zohran Mamdani, prefeito eleito da cidade de Nova York. Criminosos mascarados quebrando janelas de carros e arrastando pais de seus bebês, aterrorizando grandes parcelas da população e interferindo no funcionamento de escolas e empresas, fazem exatamente o oposto. As ondas de ódio direcionadas por Trump e seus seguidores – contra pessoas do Haiti durante a campanha de 2024, contra pessoas da Venezuela nesta primavera e verão, e mais recentemente contra pessoas da Somália – baseiam-se em mentiras e insultos difamatórios, porque os fatos sobre esses grupos não corroboram o ódio.

Essa campanha de terror e demonização finge servir à recriação de uma América branca que nunca existiu. Os EUA, quando supremacistas brancos como Trump eram jovens, eram mais brancos, mas nunca foram um país totalmente branco. Em 1776, as 13 colônias que se tornariam os Estados Unidos incluíam uma porcentagem significativa de pessoas negras e indígenas (alguns estados do sul tinham um terço ou mais de sua população negra). Quando os EUA anexaram o Texas em 1844 e, em 1848, tomaram toda a metade norte do México, uma população de língua espanhola já estava estabelecida em partes do que hoje é o sudoeste e a Califórnia. O primeiro muçulmano africano no que hoje são os Estados Unidos chegou em uma expedição espanhola quase um século antes de o Mayflower trazer seus puritanos fanáticos às costas de Massachusetts em 1620.

A perseguição de um grande número de pessoas não brancas e até mesmo as deportações em massa não criarão o país branco dos sonhos da extrema direita. Los Angeles, por exemplo, é uma cidade com quase 50% de população latina e, apesar dos ultrajes do ICE e da patrulha da fronteira, das prisões, encarceramentos e deportações, continua sendo assim. O próprio nome da cidade é espanhol, uma lembrança de quem estava aqui primeiro. Todo o ódio, toda a perseguição, parece ser o pânico de racistas que fingem poder impedir que o futuro deste país deixe de ser majoritariamente branco através da pura crueldade.

Isso se soma a um ataque aos direitos reprodutivos que, por vezes, visa abertamente fazer com que mulheres brancas tenham mais filhos (os EUA têm uma taxa de natalidade abaixo da taxa de reposição, o que tem um impacto menor do que em muitos outros países que enfrentam o mesmo declínio, porque uma força de trabalho imigrante jovem e trabalhadora mantém a economia funcionando). É claro que, em vez de oferecer o apoio que poderia tornar a maternidade menos árdua, eles estão tentando atingir seus objetivos por meios punitivos. E não está funcionando. Margaret Talbot, da revista The New Yorker, escreve que a política reprodutiva de J.D. Vance – e os insultos a mulheres sem filhos – equivalem ao pronatalismo, que “normalmente combina preocupações com a queda das taxas de natalidade com ideias anti-imigração e antifeministas”.

Da mesma forma, a CNN relata : “Grupos de defesa dos direitos reprodutivos e outras organizações de defesa afirmam que esses esforços para aumentar a taxa de natalidade não compensam as prioridades mais amplas do governo, que visam cortar programas federais como o Medicaid, o Programa de Seguro de Saúde Infantil (CHIP) e outras iniciativas que apoiam mulheres e crianças. O foco pró-família, dizem eles, não se trata apenas de aumentar a procriação. Em vez disso, afirmam, está sendo usado como arma para promover uma agenda conservadora que ameaça a saúde das mulheres, os direitos reprodutivos e a participação no mercado de trabalho.”

As políticas anti-imigração e pró-natalistas se resumem a fantasias de redirecionar o futuro demográfico deste país. Ambas se resumem, no fim das contas, a intimidações estúpidas de pessoas preconceituosas que, inadvertidamente, demonstram que suas pretensões de superioridade precisam ser baseadas em raça e gênero, porque, caso contrário, são apenas idiotas incoerentes.

Muitas das justificativas da administração Trump não condizem com a realidade e os resultados. Os ataques no sul do Caribe têm como alvo pequenas embarcações que não foram confirmadas como transportando drogas e que não têm capacidade para chegar aos Estados Unidos. A Venezuela não está envolvida de forma significativa no tráfico de fentanil e está muito menos envolvida no tráfico de cocaína do que outros países sul-americanos.

“Rejeitamos as ideologias desastrosas das 'mudanças climáticas' e do 'emissões líquidas zero'”, afirma um novo documento da Casa Branca . Trump e sua equipe são sentimentalmente apegados aos combustíveis fósseis, especialmente o carvão, e estão forçando diversas localidades dos EUA a desperdiçar dinheiro com esse combustível obsoleto e tóxico, enquanto sabotam energias renováveis ​​mais baratas e limpas. Robert F. Kennedy Jr., secretário de saúde dos EUA, está sabotando a saúde pública enquanto promove planos anticientíficos para controlar a dieta dos americanos.

A premissa dos ataques contra imigrantes é que pessoas de cor que não nasceram nos EUA são intrusas e ameaças, mas de Los Angeles a Charlotte, na Carolina do Norte, e de Chicago a Portland e Nova York, são os violentos soldados do governo Trump, com o ICE e a patrulha da fronteira, que os moradores locais percebem como ameaças indesejáveis ​​e invasores violentos. Não há sinal mais dramático da rejeição ao trumpismo do que os milhares e milhares de pessoas se organizando, comparecendo, arriscando a própria segurança, sendo presas e enfrentando acusações criminais para defender seus vizinhos. Cidade após cidade se levantou para defender seus cidadãos. Todos os insultos de Trump não podem mudar isso.

¨      Renildo Souza: O segundo choque global da China

Este final de 2025 ganhou animação na mídia econômica global a ideia de que a China hoje só vende e não precisa comprar mais nada, supostamente manufaturados. Afora os tons aparentemente fantásticos, exasperados ou alarmistas do noticiário, vale indagar sobre as características e as implicações dessa inflexão no comércio externo da China. Nos últimos anos, os crescentes superávits comerciais chineses estão sendo caracterizados como o segundo choque chinês.

Desde o primeiro governo de Donald Trump, os Estados Unidos têm feito uma verdadeira campanha denunciando a overcapacity chinesa (sobrecapacidade produtiva, excesso de oferta). Do lado chinês, em resposta às barreiras tarifárias dos países centrais, os capitais realocaram suas plantas para México, Vietnã, Tailândia etc. Por triangulação, os bens da China continuam penetrando nos mercados mais ricos.

Vamos recapitular alguns pontos. A primeira década do século XXI conheceu a novidade do impacto avassalador da ascensão chinesa sobre o comércio internacional. A China inundava o mundo com bens manufaturados, ainda sem alto valor agregado, enquanto vorazmente adquiria alimentos, energia e outros produtos relacionados aos recursos naturais. A periferia capitalista animou-se com a forte melhoria dos termos de troca.

Os países centrais amealhavam os lucros das suas corporações na China. O Norte Global, contudo, começava a se assustar com a concorrência em bens manufaturados e os déficits comerciais crescentes, e reclamava do yuan desvalorizado.

De 28 bilhões de dólares em 2001, ano em que a China aderiu à OMC, o superávit atingiu o auge em 2008 com cerca de 349 bilhões. Em poucas palavras, essa é a história do primeiro choque chinês. Desde a pandemia da Covid, começou o segundo choque chinês.

O mercado mundial tem sido muito importante para a China. Segundo o Banco Mundial, a corrente de comércio como proporção do PIB da China era 38% em 2001, atingiu assombrosos 64% em 2006 e declinou constantemente para chegar a 34% em 2020. Desde 2021 parece retomar a expansão alcançando 37% em 2024.

Os superávits da China no início do século XXI constituíram o estoque trilionário de reservas do país.  Mas, desde a crise global de 2008, os saldos comerciais não retomaram uma escalada, relativamente. Os níveis das exportações e importações chinesas se aproximaram.

A partir de 2021, porém, as exportações líquidas da China avançaram constantemente. As exportações de bens descolaram-se para cima da tendência percorrida até a pandemia. Desde então, as importações declinaram e estagnaram em um patamar inferior.

Além dessa divergência entre os movimentos de vendas e compras externas, cabe chamar a atenção para a queda das parcelas de bens e insumos manufaturados nas importações chinesas. Agora, parece que basta comprar alimentos e matérias-primas, porque a manufatura doméstica, supõe-se, já cobre todas as necessidades.

<><> Endividamento

Na década de 2010, o crescimento se desacelerou. Era o novo normal, expansão com qualidade, justificavam os porta-vozes de Pequim. A cada ano, entretanto, o governo continuou a despejar estímulos monetários e fiscais, ajudando a sustentar a economia. Os críticos denunciavam a artificialidade de uma certa economia de endividamento.

O governo, habitualmente, força a oferta de abundantes créditos dos bancos públicos, as empresas elevam os investimentos, inclusive improdutivos. Aumentam os casos de capacidade instalada ociosa. Nesse contexto, as obras de infraestrutura, transportes e urbanização criaram uma bolha, que começou a deflacionar em 2021.

Os governos locais promoveram a corrida de novos negócios. Da economia vem a legitimidade do regime. Cada grande centro municipal ou provincial, promovia o surgimento de inúmeras empresas, sobretudo nos setores de tecnologia digital, energias renováveis e carros elétricos, ao lado de incentivos para acelerada automação da manufatura. Dessa trajetória, a China teria, agora, colhido overcapacity, capacidade produtiva excessiva, superprodução e nova dependência dos mercados externos.

Os países centrais cobram que parte dos bens exportáveis seja redirecionada para o mercado doméstico da China, com mais consumo das famílias chinesas. No final do mês passado, novembro de 2025, o governo chinês anunciou um pacote de incentivos ao consumo. O economista Michael Pettis, perplexo, “tuitou”, dizendo que esse plano, equivocadamente, é para aumentar a oferta de bens de consumo, quando o problema é de escassez de demanda. Michael Pettis, indignado, protesta contra os irrisórios 53% de consumo como proporção do PIB em 2025.

Michael Pettis insiste na necessidade de amplos programas de redistribuição de renda. A China é um dos países com mais desigualdade renda e riqueza. Desde 2010, os salários começaram a aumentar na China, mas ainda estão muito longe dos padrões dos países avançados. Além disso, há agora uma massiva precarização do mercado de trabalho, que foi assaltado pelo trabalho por plataformas digitais, a exemplo do serviço de entregadores. Há uma certa melhoria na provisão de serviços sociais, mas certa mercantilização implica em vazamento da renda das famílias.

<><> Tecnologia

Na China, estruturalmente, combinaram-se três fatores:

(i)          a imensa acumulação de capitais firmas estatais e privadas por muito tempo;

(ii)         a graduação tecnológica na mais larga arena competitiva dos mercados internacionais; e

(iii)        a centralidade das políticas industriais agressivas e abrangentes e os apoios ao sistema nacional de inovação desde antes da crise de 2008.

Os três fatores acima, combinados, constituíram a plataforma para lançamento de duas políticas estruturantes na década de 2010: a nova rota da seda (Belt and Road Initiative) e o Made in China 2025.

A nova rota da seda, com infraestruturas físicas e digitais, criou e consolidou mais mercados para as firmas e para os excedentes de bens da China. O Made in China preparou as empresas chinesas para a disputa da liderança mundial nos setores da fronteira tecnológica. O novo salto exportador, com competitividade insuperável em produtos de alto valor agregado, tem a ver, em parte, com os efeitos muito amplos dessas políticas, pois.

Em resposta à alegação de overcapacity, argumenta-se, do lado chinês, que a nova onda exportadora se deve aos avanços tecnológicos, ganhos de produtividade e, por conseguinte, legítimas vantagens competitivas. Além de fábrica do mundo, a China estaria se encaminhando para ser, ao mesmo tempo, o laboratório mundial de tecnologias avançadas. A China já estaria ganhando a corrida da inovação.

Entretanto, as condições domésticas da China apresentam outros ingredientes para o enredo do segundo choque global. O processo deflacionário, que se arrasta há muitos anos, a selvagem guerra de preços e a compressão dos lucros denunciam a superprodução. Lá na China, esse estado de coisas está sendo chamado de involucionismo. É essa a fonte das pressões por vendas externas em busca de margens maiores de lucro.

Na verdade, o galope exportador expressa tanto a concorrência por inovação (diferenciação, qualidade, competitividade), quanto a velha competição por preço. É ilustrativo, nesse sentido, o debate no recente Fórum do Automóvel em Xangai. O representante da BYD defendeu a guerra de preços dentro da China e disse que esse involucionismo é correto. O representante da Geely atacou a guerra de preços, como algo nefasto, citando até Deng Xiaoping (desencarnado há mais 30 décadas).

Para concluir, vale questionar as implicações dessa nova escalada exportadora. Deixemos de lado o hipócrita lamento do Norte Global. Então, das características novas desse segundo choque chinês, há de se perguntar quais as implicações para o Sul Global.

Se a China monopoliza a manufatura de alto valor agregado (além de autossuficiência produtiva geral) e as tecnologias na fronteira do conhecimento, em benefício da sua acumulação de capitais, onde fica a periferia capitalista na nova hierarquia de poder e riqueza? A desindustrialização nos países do capitalismo dependente parece ganhar agora novos componentes.

Nessas circunstâncias, parece ser hora de sair do embasbacado deslumbramento com as maravilhas chinesas. Pense, extasiado, por exemplo, nas ferrovias de alta velocidade, e sim é uma realização grandiosa, com o foram a máquina a vapor, o carro, o avião…. Cabe compreender a China tal qual ela é: um exuberante sucesso econômico do capitalismo nacional-desenvolvimentista, beneficiado, paradoxalmente, pela globalização neoliberal. No passado, imagina-se que muitos também se embeveceram com as belezas dos parques de Londres ou os arranhas céus de Nova Iorque. Voltando à realidade: a China ameaça empurrar a maioria dos países periféricos de volta aos padrões coloniais de comércio do século XIX.

 

Fonte: A Terra é Redonda

 

Nenhum comentário: