Rebecca
Solnit: Trump quer recriar uma América branca que nunca existiu
À
medida que Donald Trump se deteriora e
seu poder diminui, ele tem atacado furiosamente jornalistas mulheres e grupos
étnicos, mais recentemente os somalis-americanos. Seus insultos surtem efeito
devido à animosidade e ao poder que ele detém, não à sua veracidade. Da mesma
forma, os ataques de sua administração contra imigrantes são descuidados e
baseados em mentiras. É extremamente claro que o alvo não são indivíduos com
antecedentes criminais. É qualquer pessoa culpada de ser parda. Indígenas
americanos com carteiras de identidade tribal, cidadãos americanos, pessoas que
realizam trabalhos essenciais, da construção civil à enfermagem, veteranos
militares, estudantes universitários, pessoas que dormem em suas próprias
camas, crianças pequenas: todos os tipos de residentes deste país estão sob
ataque.
“As
operações do ICE são cruéis, desumanas e não contribuem em nada para a
segurança pública”, declara Zohran Mamdani,
prefeito eleito da cidade de Nova York. Criminosos mascarados quebrando janelas
de carros e arrastando pais de seus bebês, aterrorizando grandes parcelas da
população e interferindo no funcionamento de escolas e empresas, fazem exatamente
o oposto. As ondas de ódio direcionadas por Trump e seus seguidores – contra
pessoas do Haiti durante a campanha de 2024, contra pessoas da Venezuela nesta
primavera e verão, e mais recentemente contra pessoas da Somália – baseiam-se
em mentiras e insultos difamatórios, porque os fatos sobre esses grupos não
corroboram o ódio.
Essa
campanha de terror e demonização finge servir à recriação de uma América branca
que nunca existiu. Os EUA, quando supremacistas brancos como Trump eram jovens,
eram mais brancos, mas nunca foram um país totalmente branco. Em 1776, as 13
colônias que se tornariam os Estados Unidos incluíam uma porcentagem
significativa de pessoas negras e indígenas (alguns estados do sul tinham um
terço ou mais de sua população negra). Quando os EUA anexaram o Texas em 1844
e, em 1848, tomaram toda a metade norte do México, uma população de língua
espanhola já estava estabelecida em partes do que hoje é o sudoeste e a
Califórnia. O primeiro muçulmano africano no que hoje são os Estados
Unidos chegou em uma
expedição espanhola quase um século antes de o Mayflower trazer seus puritanos
fanáticos às costas de Massachusetts em 1620.
A
perseguição de um grande número de pessoas não brancas e até mesmo as
deportações em massa não criarão o país branco dos sonhos da extrema direita.
Los Angeles, por exemplo, é uma cidade com quase 50% de população latina e,
apesar dos ultrajes do ICE e da patrulha da fronteira, das prisões,
encarceramentos e deportações, continua sendo assim. O próprio nome da cidade é
espanhol, uma lembrança de quem estava aqui primeiro. Todo o ódio, toda a
perseguição, parece ser o pânico de racistas que fingem poder impedir que o
futuro deste país deixe de ser majoritariamente branco através da pura
crueldade.
Isso se
soma a um ataque aos direitos reprodutivos que, por vezes, visa abertamente
fazer com que mulheres brancas tenham mais filhos (os EUA têm uma taxa de
natalidade abaixo da taxa de reposição, o que tem um impacto menor do que em
muitos outros países que enfrentam o mesmo declínio, porque uma força de
trabalho imigrante jovem e trabalhadora mantém a economia funcionando). É claro
que, em vez de oferecer o apoio que poderia tornar a maternidade menos árdua,
eles estão tentando atingir seus objetivos por meios punitivos. E não está
funcionando. Margaret Talbot, da revista The New Yorker, escreve que a política
reprodutiva de J.D. Vance – e os insultos a mulheres sem filhos – equivalem ao
pronatalismo, que “normalmente combina preocupações com a queda das taxas de
natalidade com ideias anti-imigração e antifeministas”.
Da
mesma forma, a CNN relata : “Grupos de
defesa dos direitos reprodutivos e outras organizações de defesa afirmam que
esses esforços para aumentar a taxa de natalidade não compensam as prioridades
mais amplas do governo, que visam cortar programas federais como o Medicaid, o Programa
de Seguro de Saúde Infantil (CHIP) e outras iniciativas que apoiam mulheres e
crianças. O foco pró-família, dizem eles, não se trata apenas de aumentar a
procriação. Em vez disso, afirmam, está sendo usado como arma para promover uma
agenda conservadora que ameaça a saúde das mulheres, os direitos reprodutivos e
a participação no mercado de trabalho.”
As
políticas anti-imigração e pró-natalistas se resumem a fantasias de
redirecionar o futuro demográfico deste país. Ambas se resumem, no fim das
contas, a intimidações estúpidas de pessoas preconceituosas que,
inadvertidamente, demonstram que suas pretensões de superioridade precisam ser
baseadas em raça e gênero, porque, caso contrário, são apenas idiotas
incoerentes.
Muitas
das justificativas da administração Trump não condizem com a realidade e os
resultados. Os ataques no sul do Caribe têm como alvo pequenas embarcações que
não foram confirmadas como transportando drogas e que não têm capacidade para
chegar aos Estados Unidos. A Venezuela não está envolvida de forma
significativa no tráfico de fentanil e está muito menos envolvida no tráfico de
cocaína do que outros países sul-americanos.
“Rejeitamos
as ideologias desastrosas das 'mudanças climáticas' e do 'emissões líquidas
zero'”, afirma um novo documento da Casa Branca . Trump e sua
equipe são sentimentalmente apegados aos combustíveis fósseis, especialmente o
carvão, e estão forçando diversas localidades dos EUA a desperdiçar dinheiro
com esse combustível obsoleto e tóxico, enquanto sabotam energias renováveis mais baratas e
limpas. Robert F. Kennedy Jr., secretário de saúde
dos EUA, está sabotando a saúde pública
enquanto promove planos anticientíficos para controlar
a dieta dos americanos.
A
premissa dos ataques contra imigrantes é que pessoas de cor que não nasceram
nos EUA são intrusas e ameaças, mas de Los Angeles a Charlotte, na Carolina do
Norte, e de Chicago a Portland e Nova York, são os violentos soldados do
governo Trump, com o ICE e a patrulha da fronteira, que os moradores locais
percebem como ameaças indesejáveis e invasores violentos. Não
há sinal mais dramático da rejeição
ao trumpismo do que os milhares e milhares de pessoas se organizando,
comparecendo, arriscando a própria segurança, sendo
presas e enfrentando acusações criminais para defender seus vizinhos. Cidade
após cidade se levantou para defender seus cidadãos. Todos os insultos de Trump
não podem mudar isso.
¨ Renildo Souza: O
segundo choque global da China
Este
final de 2025 ganhou animação na mídia econômica global a ideia de que a China
hoje só vende e não precisa comprar mais nada, supostamente
manufaturados. Afora os tons aparentemente fantásticos, exasperados ou
alarmistas do noticiário, vale indagar sobre as características e as
implicações dessa inflexão no comércio externo da China. Nos últimos anos, os
crescentes superávits comerciais chineses estão sendo caracterizados como o
segundo choque chinês.
Desde o
primeiro governo de Donald Trump, os Estados Unidos têm feito uma verdadeira
campanha denunciando a overcapacity chinesa (sobrecapacidade
produtiva, excesso de oferta). Do lado chinês, em resposta às barreiras
tarifárias dos países centrais, os capitais realocaram suas plantas para
México, Vietnã, Tailândia etc. Por triangulação, os bens da China continuam penetrando
nos mercados mais ricos.
Vamos
recapitular alguns pontos. A primeira década do século XXI conheceu a novidade
do impacto avassalador da ascensão chinesa sobre o comércio internacional. A
China inundava o mundo com bens manufaturados, ainda sem alto valor agregado,
enquanto vorazmente adquiria alimentos, energia e outros produtos relacionados
aos recursos naturais. A periferia capitalista animou-se com a forte melhoria
dos termos de troca.
Os
países centrais amealhavam os lucros das suas corporações na China. O Norte
Global, contudo, começava a se assustar com a concorrência em bens
manufaturados e os déficits comerciais crescentes, e reclamava do yuan
desvalorizado.
De 28
bilhões de dólares em 2001, ano em que a China aderiu à OMC, o superávit
atingiu o auge em 2008 com cerca de 349 bilhões. Em poucas palavras, essa é a
história do primeiro choque chinês. Desde a pandemia da Covid, começou o
segundo choque chinês.
O
mercado mundial tem sido muito importante para a China. Segundo o Banco
Mundial, a corrente de comércio como proporção do PIB da China era 38% em 2001,
atingiu assombrosos 64% em 2006 e declinou constantemente para chegar a 34% em
2020. Desde 2021 parece retomar a expansão alcançando 37% em 2024.
Os
superávits da China no início do século XXI constituíram o estoque trilionário
de reservas do país. Mas, desde a crise global de 2008, os saldos
comerciais não retomaram uma escalada, relativamente. Os níveis das exportações
e importações chinesas se aproximaram.
A
partir de 2021, porém, as exportações líquidas da China avançaram
constantemente. As exportações de bens descolaram-se para cima da tendência
percorrida até a pandemia. Desde então, as importações declinaram e estagnaram
em um patamar inferior.
Além
dessa divergência entre os movimentos de vendas e compras externas, cabe chamar
a atenção para a queda das parcelas de bens e insumos manufaturados nas
importações chinesas. Agora, parece que basta comprar alimentos e
matérias-primas, porque a manufatura doméstica, supõe-se, já cobre todas as
necessidades.
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Endividamento
Na
década de 2010, o crescimento se desacelerou. Era o novo normal, expansão com
qualidade, justificavam os porta-vozes de Pequim. A cada ano, entretanto, o
governo continuou a despejar estímulos monetários e fiscais, ajudando a
sustentar a economia. Os críticos denunciavam a artificialidade de uma certa
economia de endividamento.
O
governo, habitualmente, força a oferta de abundantes créditos dos bancos
públicos, as empresas elevam os investimentos, inclusive improdutivos. Aumentam
os casos de capacidade instalada ociosa. Nesse contexto, as obras de
infraestrutura, transportes e urbanização criaram uma bolha, que começou a
deflacionar em 2021.
Os
governos locais promoveram a corrida de novos negócios. Da economia vem a
legitimidade do regime. Cada grande centro municipal ou provincial, promovia o
surgimento de inúmeras empresas, sobretudo nos setores de tecnologia digital,
energias renováveis e carros elétricos, ao lado de incentivos para acelerada
automação da manufatura. Dessa trajetória, a China teria, agora, colhido overcapacity,
capacidade produtiva excessiva, superprodução e nova dependência dos mercados
externos.
Os
países centrais cobram que parte dos bens exportáveis seja redirecionada para o
mercado doméstico da China, com mais consumo das famílias chinesas. No final do
mês passado, novembro de 2025, o governo chinês anunciou um pacote de
incentivos ao consumo. O economista Michael Pettis, perplexo, “tuitou”,
dizendo que esse plano, equivocadamente, é para aumentar a oferta de bens de
consumo, quando o problema é de escassez de demanda. Michael Pettis,
indignado, protesta contra os irrisórios 53% de consumo como proporção do PIB
em 2025.
Michael
Pettis insiste na necessidade de amplos programas de redistribuição de renda. A
China é um dos países com mais desigualdade renda e riqueza. Desde 2010, os
salários começaram a aumentar na China, mas ainda estão muito longe dos padrões
dos países avançados. Além disso, há agora uma massiva precarização do mercado
de trabalho, que foi assaltado pelo trabalho por plataformas digitais, a
exemplo do serviço de entregadores. Há uma certa melhoria na provisão de
serviços sociais, mas certa mercantilização implica em vazamento da renda das
famílias.
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Tecnologia
Na
China, estruturalmente, combinaram-se três fatores:
(i)
a
imensa acumulação de capitais firmas estatais e privadas por muito tempo;
(ii)
a
graduação tecnológica na mais larga arena competitiva dos mercados
internacionais; e
(iii)
a
centralidade das políticas industriais agressivas e abrangentes e os apoios ao
sistema nacional de inovação desde antes da crise de 2008.
Os três
fatores acima, combinados, constituíram a plataforma para lançamento de duas
políticas estruturantes na década de 2010: a nova rota da seda (Belt and
Road Initiative) e o Made in China 2025.
A nova
rota da seda, com infraestruturas físicas e digitais, criou e consolidou mais
mercados para as firmas e para os excedentes de bens da China. O Made
in China preparou as empresas chinesas para a disputa da liderança
mundial nos setores da fronteira tecnológica. O novo salto exportador, com
competitividade insuperável em produtos de alto valor agregado, tem a ver, em
parte, com os efeitos muito amplos dessas políticas, pois.
Em
resposta à alegação de overcapacity, argumenta-se, do lado chinês,
que a nova onda exportadora se deve aos avanços tecnológicos, ganhos de
produtividade e, por conseguinte, legítimas vantagens competitivas. Além de
fábrica do mundo, a China estaria se encaminhando para ser, ao mesmo tempo, o
laboratório mundial de tecnologias avançadas. A China já estaria ganhando a
corrida da inovação.
Entretanto,
as condições domésticas da China apresentam outros ingredientes para o enredo
do segundo choque global. O processo deflacionário, que se arrasta há muitos
anos, a selvagem guerra de preços e a compressão dos lucros denunciam a
superprodução. Lá na China, esse estado de coisas está sendo chamado de
involucionismo. É essa a fonte das pressões por vendas externas em busca de
margens maiores de lucro.
Na
verdade, o galope exportador expressa tanto a concorrência por inovação
(diferenciação, qualidade, competitividade), quanto a velha competição por
preço. É ilustrativo, nesse sentido, o debate no recente Fórum do Automóvel em
Xangai. O representante da BYD defendeu a guerra de preços dentro da China e
disse que esse involucionismo é correto. O representante da Geely atacou a
guerra de preços, como algo nefasto, citando até Deng Xiaoping (desencarnado há
mais 30 décadas).
Para
concluir, vale questionar as implicações dessa nova escalada exportadora.
Deixemos de lado o hipócrita lamento do Norte Global. Então, das
características novas desse segundo choque chinês, há de se perguntar quais as
implicações para o Sul Global.
Se a
China monopoliza a manufatura de alto valor agregado (além de autossuficiência
produtiva geral) e as tecnologias na fronteira do conhecimento, em benefício da
sua acumulação de capitais, onde fica a periferia capitalista na nova
hierarquia de poder e riqueza? A desindustrialização nos países do capitalismo
dependente parece ganhar agora novos componentes.
Nessas
circunstâncias, parece ser hora de sair do embasbacado deslumbramento com as
maravilhas chinesas. Pense, extasiado, por exemplo, nas ferrovias de alta
velocidade, e sim é uma realização grandiosa, com o foram a máquina a vapor, o
carro, o avião…. Cabe compreender a China tal qual ela é: um exuberante sucesso
econômico do capitalismo nacional-desenvolvimentista, beneficiado,
paradoxalmente, pela globalização neoliberal. No passado, imagina-se que muitos
também se embeveceram com as belezas dos parques de Londres ou os arranhas céus
de Nova Iorque. Voltando à realidade: a China ameaça empurrar a maioria dos
países periféricos de volta aos padrões coloniais de comércio do século XIX.
Fonte:
A Terra é Redonda

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