Leonardo
Attuch: Trump recua e busca o controle das Américas para depois retomar a
disputa com Rússia e China
A nova
Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos, anunciada pelo presidente
Donald Trump, oferece uma radiografia precisa do momento geopolítico. A
superpotência que ainda detém os maiores instrumentos de poder global, seja no
campo militar ou ideológico, reconhece algumas derrotas estratégicas e decide
recuar taticamente para reorganizar suas forças. Esse recuo não significa
fraqueza terminal, mas sim a tentativa de reconstruir capacidade de ação. E o
ponto de partida escolhido por Washington nos afeta diretamente O foco é o
chamado “Hemisfério Ocidental", ou
seja, as Américas, que são tratadas como uma zona de influência natural e, em
grande medida, vulnerável. Um quintal.
A
derrota na guerra por procuração na Ucrânia é o primeiro elemento dessa
reorientação. A expectativa de desgastar a Rússia não se concretizou. Moscou
preservou seu aparato militar, ampliou sua influência em regiões estratégicas e
fortaleceu alianças com o Sul Global. Já a Europa pagou um preço econômico alto
e saiu politicamente debilitada.
O
segundo elemento é a constatação de que os EUA perderam a disputa da
globalização. A transferência da base industrial para a Ásia, guiada por um
capitalismo financeiro que fragilizou a base industrial estadunidense e classe
média do País, permitiu que a China se tornasse a maior potência manufatureira
do planeta. A guerra comercial, apresentada por Trump como resposta, não
impediu o avanço chinês – que hoje disputa liderança tecnológica, financeira e
diplomática.
O
terceiro elemento é a erosão da hegemonia unipolar. A ascensão da China, o
ressurgimento estratégico da Rússia, a articulação de novas coalizões globais e
o fortalecimento de países emergentes tornaram o mundo muito mais complexo. Os
Estados Unidos ainda são a potência dominante, mas já não têm a mesma
capacidade de impor consensos apenas com seu soft power.
Diante
desse cenário, Trump anuncia claramente suas novas prioridades. Se não pode,
por ora, dominar o tabuleiro euroasiático, ele decide consolidar sua
retaguarda. É nesse contexto que surge o chamado “Corolário Trump”, que nada
mais é do que a Doutrina Monroe 2.0, que busca impedir que China e Rússia
ampliem sua presença econômica, tecnológica ou militar na América Latina. Ou
seja: a superpotência ferida reorganiza suas linhas antes de retomar disputas
maiores.
Essa
mudança coloca desafios imensos para o presidente Lula, cuja visão de mundo é
diametralmente oposta à lógica imperialista. Lula é, hoje, um dos líderes
globais mais claramente alinhados à multipolaridade, defensor da ascensão do
Sul Global e construtor ativo de agendas de integração, soberania e cooperação
internacional. Seu projeto de política externa busca ampliar margens de
autonomia e evitar submissão a qualquer hegemonia.
Entretanto,
a realidade interna do Brasil coloca limites duros ao exercício pleno dessa
visão. O país carrega Forças Armadas estruturadas sob o modelo estadunidense,
desde formação, doutrina e equipamentos. Convive com uma elite econômica
profundamente conectada aos circuitos financeiros de Wall Street – circuitos
que condicionam decisões de investimento, expectativas de mercado e orientações
de política econômica. E enfrenta uma mídia hegemônica alinhada aos interesses
históricos de Washington, que frequentemente questiona qualquer gesto de
afirmação soberana.
Nessas
circunstâncias, Lula terá que ser, mais do que nunca, um equilibrista
excepcional. De um lado, precisa sustentar seu compromisso com a
multipolaridade, com a integração latino-americana e com a construção de
alternativas à dependência histórica. De outro, terá que navegar pragmática e
cuidadosamente dentro de um sistema interno que resiste a mudanças profundas e
que, em muitos momentos, atua como extensão informal das pressões geopolíticas
externas.
Trump
sabe dessas limitações. Sabe também que muitos governos latino-americanos são
suscetíveis a agendas que combinam neoliberalismo, entreguismo e repressão
interna – o tripé que Trump diz esperar dos parceiros latino-americanos. Ao
reforçar sua presença no continente, o governo norte-americano tenta impedir
que a região se transforme em base de projeção de potências rivais e busca
conter qualquer projeto de autonomia.
Nos
dias de hoje, o mundo vive uma disputa estrutural entre hegemonia e
multipolaridade, entre a manutenção de um centro único de poder e a emergência
de novas forças políticas e econômicas. Trump tenta reorganizar sua posição
nesse cenário. Lula, por sua vez, representa uma das vozes mais consistentes do
campo multipolar.
A
diferença é que Trump opera a partir da potência militar mais robusta do
planeta. Lula atua a partir de um país com fragilidades internas que não podem
ser ignoradas. O futuro da esquerda e de projetos soberanos nas Américas
dependerá, em grande medida, da capacidade de Lula de navegar neste mar
turbulento.
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Estratégia de Trump resgata a Doutrina Monroe e reforça
ambições militares no Hemisfério Ocidental
A nova
Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos, divulgada nesta
sexta-feira (5), apresenta uma guinada agressiva na política externa do
presidente Donald Trump, reafirmando ambições históricas de supremacia
norte-americana no continente americano. O documento, de 29 páginas, foi
detalhado em reportagem da Reuters, que destacou a intenção explícita de
recuperar a antiga Doutrina Monroe, concebida no século 19 para declarar o
Hemisfério Ocidental como área de influência exclusiva de Washington.
O texto
define o conceito de “realismo flexível” como eixo da visão estratégica de
Trump e afirma que a política externa do presidente é “motivada acima de tudo
pelo que funciona para a América”. Segundo o documento, os Estados Unidos
devem “restaurar a preeminência americana” na região e colocar
as Américas no topo das prioridades do governo.
“Esse
‘Corolário Trump’ à Doutrina Monroe é uma restauração de bom senso e potência
do poder americano, consistente com os interesses de segurança dos Estados
Unidos”, afirma o documento, sinalizando que o robusto aumento da presença
militar norte-americana no Caribe não será temporário.
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Presença militar crescente e histórico intervencionista reacendem temores na
região
Desde
que Trump assumiu o mandato, críticas se intensificaram diante de sua retórica
considerada imperialista. Ele chegou a mencionar, de forma vaga, ideias como
retomar o Canal do Panamá e anexar a Groenlândia e o Canadá. Mais recentemente,
a mobilização militar na região reforçou preocupações: mais de 10 mil soldados
foram enviados ao Caribe, acompanhados de porta-aviões, navios de guerra e
jatos de combate, em meio a ameaças de ataques em países como Venezuela e
outros afetados por operações de cartéis de drogas.
O
analista Jason Marczak, do Atlantic Council, avaliou:
“A
nova Estratégia de Segurança Nacional deixa muito claro que não vamos voltar ao
que era antes.”
O
documento também destaca o avanço econômico da China na América Latina como
preocupação crescente, retomando a lógica de disputa de influência que marcou a
Guerra Fria.
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Indo-Pacífico: reforço militar para conter China e defender Taiwan
A
estratégia amplia o foco militar dos EUA no Indo-Pacífico. O texto aponta que
Washington buscará evitar um conflito direto com a China por meio do
fortalecimento de capacidades militares próprias e de aliados.
“Dissuadir
um conflito sobre Taiwan, idealmente preservando a superioridade militar, é
prioridade”, diz o documento.
A
questão de Taiwan e do Mar do Sul da China tem sido um dos pontos mais
sensíveis nas relações sino-americanas, e a formalização dessa diretriz eleva a
tensão estratégica na região, especialmente diante do histórico de decisões
imprevisíveis da administração Trump.
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Europa é alvo de ataques e advertências sobre “apagamento civilizacional”
Em tom
duro, o texto coloca em xeque a relação com aliados históricos e afirma que a
Europa corre o risco de enfrentar um “apagamento civilizacional”.
Segundo o documento, vários países da OTAN poderiam se tornar “majoritariamente
não europeus” nas próximas décadas — argumento semelhante ao utilizado por
partidos de extrema direita no continente.
O
governo Trump exige que a Europa reconstrua suas capacidades militares e assuma
a maior parte das responsabilidades na defesa convencional da OTAN. A Reuters
informa que Washington pressiona para que países europeus assumam desde
sistemas de inteligência até capacidades de mísseis, em um cronograma
considerado irrealista por autoridades europeias.
Ao
mesmo tempo, o documento afirma que interessa aos EUA resolver rapidamente o
conflito na Ucrânia e restabelecer “estabilidade estratégica” com a Rússia,
ecoando críticas recorrentes de que Trump seria “brando com Moscou” devido às
suas declarações elogiosas ao presidente Vladimir Putin.
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Nova hierarquia geopolítica: Américas e Pacífico como prioridades, Europa como
perdedora
Brad
Bowman, especialista da Foundation for Defense of Democracies, sintetizou o
novo mapa de prioridades traçado pelo governo:
“Vencedores
na disputa por tempo, recursos e atenção? Hemisfério Ocidental e talvez o
Pacífico. Perdedores? Europa. A definir? Oriente Médio. África? Boa sorte...”
A
avaliação reforça que a estratégia de Trump abandona a ordem internacional
construída após a Segunda Guerra Mundial, na qual alianças multilaterais —
especialmente com a Europa — eram pilares centrais da política externa dos
Estados Unidos.
¨ Estratégia de
segurança dos EUA coloca China como rival central e amplia lógica de contenção
global
A
divulgação da Estratégia de Segurança Nacional (NSS) de 2025 pela Casa Branca
expôs, segundo o analista político James Wood, a visão real de Washington
sobre o mundo. Ele afirma que o texto é “uma das janelas mais claras até agora
sobre como os Estados Unidos realmente enxergam o cenário internacional”.
Wood
destaca que o documento abandona o discurso tradicional sobre uma “ordem
baseada em regras” e adota um tom direto, “sem rodeios e extremamente
revelador”.
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China é tratada como principal rival estratégico e potência de nível semelhante
Para o
analista, o trecho mais significativo é o reconhecimento explícito de que China
e Estados Unidos são agora “potências quase equivalentes”.
Segundo
Wood, a NSS admite pela primeira vez que a antiga política de engajamento com a
China “falhou”, porque Pequim não assumiu o papel subordinado que Washington
imaginava.
A
interpretação do especialista é clara: os EUA pretendem ampliar a contenção em
várias frentes. Ele observa que a estratégia aponta para “mais dissuasão, mais
pressão e mais expansão militar ao redor da China”, transformando a Primeira
Cadeia de Ilhas em “uma muralha de força”, ao mesmo tempo em que exige que
aliados arquem com parte crescente dos custos.
No
campo econômico, Wood afirma que não há ruptura total, mas um engajamento
controlado. Para ele, trata-se de cooperação apenas em áreas que não afetem o
poder norte-americano, enquanto o restante será objeto de competição, restrição
ou bloqueio. “Isso é contenção de longo prazo sob outro nome”, resume.
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Retorno explícito da Doutrina Monroe sob o chamado ‘corolário Trump’
Wood
aponta que o documento também marca o retorno aberto da Doutrina Monroe,
reformulada como um “corolário Trump”.
A
mensagem é direta: a América Latina deve permanecer sob influência dos Estados
Unidos, e a presença de potências externas — especialmente a China — passa a
ser vista como indesejável.
Em sua
leitura, isso significa mais atividade naval, mais pressão sobre governos
latino-americanos e uma postura mais dura em relação a fronteiras e migrações.
Wood define o movimento como “uma declaração muito explícita de dominação
hemisférica”.
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Avaliação dos EUA sobre a Europa é severa e intervencionista
Um dos
trechos mais surpreendentes para Wood é a análise da situação europeia.
O
documento afirma que a Europa enfrenta “apagamento civilizacional” e pode se
tornar “irreconhecível” em breve. Critica o excesso regulatório, a estagnação
econômica, as mudanças demográficas e a fragmentação política.
Wood
destaca especialmente a afirmação de que os EUA desejam “cultivar resistência”
dentro dos países europeus para alterar sua direção política — algo que ele
descreve como engenharia política aberta contra aliados.
A NSS
também culpa líderes europeus pela prolongação da guerra na Ucrânia e alerta
para o aumento da dependência europeia em relação à China e à Rússia. Para
Wood, essa é “a postura mais confrontacional já registrada pelos EUA em um
documento oficial sobre a Europa”.
Oriente
Médio deixa de ser centro estratégico e passa a ser zona de investimentos
Segundo
Wood, o Oriente Médio perdeu prioridade na política externa dos EUA. Ele afirma
que Washington agora trata a região mais como uma área de investimento do que
como um palco de disputas geopolíticas centrais.
Os EUA
buscam cooperação em segurança, parcerias tecnológicas e operações de
contraterrorismo, mas não pretendem repetir “outra geração de guerras longas e
desordenadas”. Para o analista, essa abordagem é “notavelmente mais pragmática
e menos ideológica”.
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África é vista sob ótica de recursos estratégicos, não de ajuda humanitária
A seção
sobre África é curta, mas clara. Wood observa que os EUA querem acesso a
minerais, energia e influência, sobretudo para conter a presença chinesa.
Segundo
ele, os EUA estão substituindo o discurso humanitário por uma abordagem de
“extração estratégica”. Como resume Wood, “não há nada de sutil nisso”.
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Doutrina real dos EUA é exposta de forma direta
Wood
identifica uma frase que, em sua opinião, sintetiza toda a lógica da
estratégia:
“Os
Estados Unidos não podem permitir que qualquer nação se torne tão dominante a
ponto de ameaçar nossos interesses.”
Para
ele, essa é “a formulação mais clara da hegemonia americana que vi em anos” —
sem ornamentações morais ou justificativas multilaterais.
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Clima deixa de ser prioridade e liderança é praticamente entregue à China
A NSS
rejeita metas de emissões líquidas zero e políticas guiadas pela agenda
climática.
Wood
interpreta isso como um recuo definitivo da liderança climática
norte-americana. Ele afirma que os EUA parecem confortáveis com a ideia de
deixar a China ocupar esse espaço, especialmente porque Pequim já domina
setores como energia solar, baterias, veículos elétricos e tecnologias de
transição energética.
Para
ele, essa posição equivale quase a admitir que os EUA “não conseguem acompanhar
esse ritmo”.
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Rivalidade China–EUA torna-se permanente e independente de governos
Wood
considera que a estratégia consolida uma competição estrutural de longo prazo.
Os Estados Unidos, segundo ele, assumem compromisso de:
– intensificar a
pressão militar ao redor da China
– coordenar aliados para resistir ao avanço econômico chinês
– disputar influência global da América Latina à África
– defender a supremacia tecnológica norte-americana a qualquer custo
Ele
conclui que esta é “a estratégia mais adversarial já registrada contra a China
em um documento oficial dos EUA”.
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Mudança de tom: fim do multilateralismo retórico e adoção explícita de esferas
de influência
Wood
avalia que a principal mudança não está apenas no conteúdo, mas no tom.
Estratégias anteriores escondiam ambições de poder sob discursos de valores
compartilhados. A NSS de 2025 não faz isso.
Em vez
disso, adota abertamente a lógica das esferas de influência, transfere custos
para aliados, incentiva resistência política dentro de países parceiros e
afirma de forma direta a primazia norte-americana.
Para o
analista, trata-se de uma “visão de mundo centrada na competição, não na
coexistência”.
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EUA organizam sua estratégia global em torno da ascensão chinesa
Wood
sintetiza o significado da NSS afirmando que ela projeta um mundo no qual:
– a China é o rival
central
– a Europa está “derivando” e precisa ser corrigida
– a América Latina deve retornar ao controle dos EUA
– a África se torna campo de disputa por recursos
– o Oriente Médio é monetizado
– a responsabilidade climática é abandonada
– a hegemonia norte-americana governa toda a política externa
E,
segundo ele, ao chamar a China de “potência quase equivalente”, os Estados
Unidos finalmente admitem o que evitaram por anos: a ascensão chinesa é
irreversível e agora reorganiza toda a estratégia global de Washington.
Fonte:
Brasil 247

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