Energia
nuclear brasileira. Um sonho
A
história ensina que raros são os momentos em que se abrem janelas de
oportunidade capazes de redefinir o destino de uma nação. Esses instantes, por
sua natureza fugaz, exigem mais do que sorte ou boas intenções, demandam visão
de estado, pensamento estratégico, lucidez política e disposição para agir com
coragem diante das incertezas do mundo. As oportunidades não surgem em tempos
de conforto, mas em meio às turbulências da reconfiguração dos rumos da ordem
internacional.
A ação
do governo de Getúlio Vargas na fundação da indústria siderúrgica brasileira é
um exemplo paradigmático dessa visão estratégica. Em plena Segunda Guerra
Mundial, quando o planeta se encontrava dividido entre forças antagônicas e os
riscos pareciam insuperáveis, o Brasil soube se posicionar diante da tragédia e
afirmar sua vocação nacional de busca pela soberania e pelo combate às
tiranias.
O envio
de tropas à Europa – que cobrou da nação o sacrifício de vidas no enfrentamento
ao nazismo e o investimento de recursos escassos – foi fruto de uma clareza
sobre a conjuntura internacional, conduzida com intencionalidade e senso de
propósito, alinhada ao interesse nacional. Daquele contexto adverso emergiu uma
conquista decisiva: a siderurgia nacional, que permitiu o processo de
industrialização brasileiro. Essa conquista só foi possível pela barganha
conduzida pela diplomacia brasileira e pela visão estadista de Getúlio Vargas.
Não
compreender o esforço necessário a realização desse feito ou não entender a
importância dessa conquista pode nos levar a uma percepção errada da realidade
e a entender que o desenvolvimento de um país pode se dar sem grandes
sacrifícios. Não foi assim em lugar nenhum do mundo, como demonstram os
processos de unificação nacional e de independência por todo mundo, ou ainda as
Revoluções Chinesa, Russa e Francesa, sem querer exaurir os exemplos
históricos.
Todo
processo de desenvolvimento também exige uma unidade nacional em prol dos
interesses do Estado, o estabelecimento de objetivos de longo prazo e políticas
voltadas à consecução dessas metas. A seu tempo, Getúlio Vargas soube
compreender que soberania não é dada e nem se improvisa – é uma conquista, que
se constrói com vontade e esforço, na intersecção entre a oportunidade e a
consciência estratégica de aproveitá-la.
Justamente
por isso, além de estabelecer um projeto de desenvolvimento industrial para o
país, Getúlio Vargas também aprovou a fundação do Programa Nuclear Brasileiro,
em 1956. O estadista soube que, além de ser crucial uma matriz energética
robusta para a industrialização de um país, dominar tecnologias nucleares era
essencial para melhor estabelecer a soberania do Brasil. Não à toa, o programa,
que sempre buscou a melhor inserção do país na ordem nuclear global, enfrentou
diversos entraves externos e internos que, em vez de diminuírem sua
importância, apenas a tornaram mais evidente.
Relembrar
a experiência de Getúlio Vargas não constitui um exercício de nostalgia ou uma
exegese sobre a figura de Getúlio Vargas como estadista. Voltar-se ao passado,
nesse caso, tem a finalidade de reconhecer que certos momentos de inflexão
reaparecem sob novas formas e exigem das nações a mesma clareza estratégica e a
mesma disposição para agir.
O
cenário atual indica a presença de uma conjuntura rara, marcada pela
convergência entre crise climática, transição energética, aumento da demanda
por energia e a emergência da multipolaridade. Esse conjunto de fatores, que se
analisará a seguir, sugere a existência de uma oportunidade que não pode ser
desperdiçada, qual seja o fortalecimento expressivo do Programa Nuclear
Brasileiro.
O
Brasil reúne condições materiais, diplomáticas e estratégicas singulares para
projetar sua inserção internacional a partir do aproveitamento racional de suas
riquezas naturais e de sua tradição de política externa voltada à cooperação e
à multipolaridade. Ao longo de sua história, a diplomacia brasileira construiu
um repertório de atuação baseado autonomia e na resolução pacífica dos
conflitos, na valorização do multilateralismo como instrumento de equilíbrio
entre as potências e na cooperação com outros países.
Esse
legado é especialmente precioso frente a atual conjuntura internacional, em que
a reorganização do poder global amplia o espaço de atuação de países que
pretendem se afirmar como polos de estabilidade e cooperação. Inserido nesse
cenário, o Brasil tem condições de utilizar o desenvolvimento nuclear como
instrumento de política externa e de consolidação de uma presença ativa no
sistema internacional, dado que é o país de toda América do Sul com o programa
nuclear mais desenvolvido e com uma inquestionável vocação política externa
pacífica.
A
crescente competição entre as grandes potências e a busca global por segurança
energética criam um ambiente propício ao fortalecimento de parcerias
extrarregionais de longo prazo, capazes de impulsionar o Programa Nuclear
Brasileiro. O contexto dos BRICS é particularmente favorável, pois traduz a
transição para uma ordem multipolar e abre espaço para a cooperação tecnológica
e energética em bases mais equilibradas.
A
ampliação dos vínculos com países como China, Índia e Rússia – especialmente
com a estatal russa Rosatom – reforça essa tendência e permite ao Brasil
diversificar alianças, reduzindo dependências estruturais e ampliando sua
margem de autonomia. Outro fator importante é o espaço aberto pelo isolamento
russo, maior exportador de urânio enriquecido do mundo, face às sanções
ocasionadas pela Guerra da Ucrânia, o que paradoxalmente também aumenta a
disposição russa em estabelecer novas parcerias estratégicas.
Esse
quadro ganha relevância adicional diante da valorização expressiva do urânio –
para se ter uma noção, o preço do urânio enriquecido mais que triplicou desde
2022– reafirmando o caráter estratégico de um recurso em que o país ocupa
posição privilegiada, com a sexta maior reserva mundial e o monopólio estatal
de sua exploração. A recente descoberta da jazida de Santa Quitéria, no Ceará,
reforça esse potencial e amplia a base de recursos disponíveis para o país.
Soma-se
a isso a intenção declarada do atual governo de promover esforços no
levantamento de informações sobre as riquezas minerais. Tudo converge – não se
sabe por quanto tempo – para a urgência de o Brasil aproveitar essa janela de
oportunidade, agindo de forma inequívoca e estabelecendo com clareza um
objetivo nacional que deve ser tratado como prioridade de Estado.
Mesmo
com um grande potencial, a capacidade efetiva de geração de energia nuclear
brasileira permanece modesta, desproporcional ao porte territorial, econômico e
científico do país – correspondendo a apenas 1% da matriz energética do país.
Parte disso se explica pelo alto custo inicial de projetos dessa natureza, o
que exige soluções criativas e parcerias estratégicas sólidas.
Nesse
contexto, o estabelecimento de cooperações extrarregionais é fundamental, e o
atual ambiente de competição interestatal deve ser navegado com extremo
cuidado, para que o país possa tirar proveito da situação. Ao enfrentar as
injustas tarifas impostas por Donald Trump e conclamar a defesa da soberania
nacional, Lula demonstrou possuir a disposição necessária e a compreensão que o
atual momento exige coragem e ação estatal. Em igual sentido, os recentes
contratos firmados entre as Indústrias Nucleares do Brasil (INB) e a Rosatom
demonstram que o Brasil está atento as possibilidades, cônscio que a cooperação
com outros países é um caminho profícuo que deve sempre ser buscado.
O
projeto de reindustrialização nacional depende diretamente da expansão da
oferta de energia. Ainda que o Brasil possua uma matriz relativamente limpa,
ela não é suficiente para sustentar as ambições de desenvolvimento e
modernização. O desenvolvimento nacional exige incremento da geração elétrica
em bases estáveis e de alta densidade, o que torna iniciativas como a conclusão
de Angra III indispensáveis, não só pela oferta de energia, mas todo incremento
tecnológico que tal empresa constitui.
Embora
o país detenha domínio tecnológico sobre todo o ciclo de enriquecimento do
urânio, parte desse processo ainda é realizada no exterior, consequência da
baixa escala de produção interna e da ausência de demanda que garanta
viabilidade econômica ao setor. A superação desse entrave requer a formação de
um mercado nuclear integrado e autossuficiente – inclusive com a integração
sul-americana –, capaz de sustentar uma infraestrutura produtiva contínua,
assegurar competitividade internacional e, em médio prazo, possibilitar que o
Brasil exporte urânio enriquecido.
O
sucesso do empreendimento significaria recursos capazes de impulsionar o
desenvolvimento nacional, a partir de uma atividade sobre a qual o país mantém
monopólio estatal – a extração e o beneficiamento do urânio. Tal avanço
representaria não apenas um ganho econômico expressivo, mas um passo decisivo
na consolidação de uma matriz de energia nuclear moderna, sustentável e
estrategicamente soberana.
Ademais,
parcerias internacionais envolvendo Pequenos Reatores Modulares (Small Modular
Reactors) e o desenvolvimento de projeto com tecnologia nacional de
microrreatores nucleares podem levar energia a regiões cuja infraestrutura é
precária e onde a dependência de fontes térmicas ainda impõe custos ambientais
e econômicos elevados.
Em
diversas localidades da Região Norte, o fornecimento elétrico é garantido, em
grande medida, pelo acionamento de geradores termoelétricos movidos a
combustíveis fósseis, cuja operação contínua acarreta emissões significativas
de carbono e compromete o equilíbrio ecológico da região. Mesmo em regiões que
recebem fornecimento de energia pelo Sistema Interligado Nacional, as perdas
energéticas na distribuição são extremamente onerosas, sendo, em especial,
bastante elevadas na Região Norte.
A
adoção de reatores nucleares de pequena escala surge, portanto, como
alternativa coerente com a construção de uma economia sustentável, capaz de
assegurar estabilidade energética sem ampliar o desmatamento ou agravar a crise
climática.
Ao
permitir o fornecimento contínuo e limpo de energia, esses reatores podem
viabilizar o desenvolvimento de uma indústria 4.0 conectada à preservação
ambiental e à valorização da floresta em pé, integrando inovação tecnológica e
conservação. O exemplo da Usina Hidrelétrica de Belo Monte ilustra os equívocos
do modelo tradicional de expansão energética na Amazônia, considerando que a
implantação do projeto implicou o alagamento de vastas áreas e a liberação de
enormes quantidades de CO₂ na atmosfera.
A
energia nuclear gerada a partir de pequenas usinas, por fornecer energia de
modo constante e previsível, representa o oposto dessa lógica, permitindo
expandir a oferta elétrica sem reproduzir os custos ambientais e sociais das
fontes convencionais e sem demandar a ocupação de grandes áreas.
A
realização da COP-30, em Belém, reafirma o compromisso do Brasil com a defesa
do meio ambiente e remete à COP-28, quando a energia nuclear foi oficialmente
reconhecida como fonte limpa, ao lado das renováveis. Essa decisão foi fruto de
um amplo debate científico que reposicionou a energia nuclear no centro das
estratégias de descarbonização. Persistir em negar sua importância equivale a
um ato de anacronismo científico.
Ao
contrário do que a memória de Chernobyl ou Fukushima possa sugerir, os avanços
tecnológicos e os rígidos protocolos de segurança transformaram completamente o
setor. Os quarenta anos de funcionamento de Angra I e quase trinta de Angra II
devem servir como argumento mais do que suficiente para demonstrar a gestão
segura que é realizada pelo Brasil. Hoje, a energia nuclear é parte essencial
da solução ambiental, não do problema. Defender seu desenvolvimento é também
defender o meio ambiente e o futuro energético do Brasil.
As
evidências científicas que sustentam a segurança e a eficiência da energia
nuclear, contudo, precisam ser amplamente comunicadas e debatidas de forma
transparente com a sociedade. A superação de resistências e crenças arraigadas
depende de um esforço pedagógico que busque desmistificar receios que já não
encontram respaldo na realidade tecnológica contemporânea. A compreensão social
do tema é parte essencial de qualquer política nuclear responsável, pois a
legitimidade de um programa dessa natureza exige que a população reconheça seus
benefícios concretos e tenha confiança de que não se trata de um projeto
voltado à exploração da natureza com fins de lucro para uma minoria.
Hoje, é
incontestável que a aplicação civil da tecnologia nuclear, especialmente nas
áreas médica e agrícola, já salvou incontáveis vidas e contribuiu para o avanço
da ciência em proporções muito superiores às tragédias do passado. Equipamentos
de diagnóstico por imagem, tratamentos oncológicos, esterilização de materiais
hospitalares e técnicas de conservação de alimentos são exemplos de usos
pacíficos que evidenciam o potencial humanitário e científico dessa tecnologia.
Ao incorporar essa dimensão em sua comunicação pública, o Brasil pode construir
uma narrativa consistente, capaz de unir consciência ambiental,
responsabilidade tecnológica e soberania nacional em torno de um mesmo
propósito estratégico.
É
igualmente necessário afastar discursos desconectados das urgências nacionais e
dos compromissos assumidos pelo país no cenário internacional. Entre esses
equívocos, destaca-se a ideia insensata de que o Brasil deveria investir no
desenvolvimento de armas nucleares, proposta que ignora a própria realidade
material e institucional do Estado brasileiro. Além de contrariar os princípios
da Constituição Federal, vai contra também tratados internacionais aos quais o
país é signatário, como o Tratado de Tlatelolco e o Tratado de Não Proliferação
Nuclear (TNP), essenciais para reafirmar a tradição do país perante a
comunidade internacional.
Defender
o desenvolvimento de armas nucleares se constitui em um discurso descolado das
reais necessidades do país e que em nada contribui para o fortalecimento da
soberania e da segurança nacional. Até mesmo o uso militar da tecnologia
nuclear nos projetos estratégicos do Brasil se destina exclusivamente à
propulsão de submarinos, sem qualquer propósito de uso em armamentos de ataque.
Essas falas, além de desconectadas de qualquer preocupação concreta com o
desenvolvimento nacional ou de defesa da soberania brasileira, representam um
desvio de propósito que desvirtua o sentido estratégico da política nuclear
brasileira, cuja vocação sempre foi pacífica, científica e voltada ao
fortalecimento tecnológico e energético do país.
A
defesa da energia nuclear no Brasil deve permanecer vocacionada a fins
exclusivamente pacíficos. Seu desenvolvimento deve estar orientado para a
pesquisa científica, o avanço tecnológico e a geração de energia limpa, sem
desvio para usos armamentistas e sem aderir à retórica belicista, que, além de
anacrônica, enfraquece a credibilidade internacional do país e desvia recursos
de áreas essenciais ao seu desenvolvimento.
Assim,
cumpre chamar atenção para a oportunidade singular que se apresenta ao Brasil
neste momento histórico. A elevação global do preço da energia e dos minerais
estratégicos, somada à busca por fontes limpas e seguras, cria as condições de
viabilidade econômica que por décadas pareciam inalcançáveis. Ao mesmo tempo, a
reorganização do tabuleiro geopolítico mundial, marcada pela emergência da
multipolaridade, oferece ao país uma inestimável margem de manobra diplomática.
Esse contexto permite ao Brasil negociar em melhores termos, firmar parcerias
estratégicas antes impensáveis e transformar seu potencial energético em
instrumento efetivo de desenvolvimento e soberania.
O
fortalecimento do Programa Nuclear Brasileiro representa uma decisão
estratégica de grande alcance, que reafirma o compromisso do país com a
soberania energética, o desenvolvimento científico e a inserção internacional
brasileira, constituindo um gesto cuja envergadura histórica é capaz de
redefinir o lugar do Brasil no concerto das nações do século XXI. Tal decisão
exige a clarividência de um projeto nacional, a maturidade de uma visão de
Estado atenta à excepcional conjuntura que se desenha e a determinação política
necessária para compreender e agir diante da singularidade irrepetível deste
momento histórico.
Fonte:
Por Ana Luiza Rocha Porto e Fernando Martini, em A Terra é Redonda

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