Sem
barreira jurídica, portaria da TI Tupinambá de Olivença depende apenas de
decisão do governo Lula
Há
mais de 15 anos, o povo Tupinambá aguarda que a demarcação da Terra Indígena
(TI) Tupinambá de Olivença avance. O último andamento significativo foi a
publicação do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID)
da TI, em 2009. A emissão da portaria declaratória, próxima etapa do processo
demarcatório, depende apenas da vontade política do governo Lula e do ministro
da Justiça, Ricardo Lewandowski.
“Não
cabe mais argumentos para dizer que não assina [a portaria declaratória]. Tem
que assinar”, explica Ramón, uma das 40 lideranças Tupinambá que estão
presentes em Brasília nesta semana e cobram do governo a demarcação da TI. Para
ele, a continuidade do procedimento demarcatório de suas terras “é algo
meramente político, de interesses”.
Não
há nenhum impedimento jurídico ou administrativo para que a portaria
declaratória da TI Tupinambá de Olivença, no sul da Bahia, seja publicada pelo
governo federal. É o que apontam informes técnicos da Fundação Nacional dos
Povos Indígenas (Funai) e do próprio Ministério da Justiça (MJ), responsável
pela emissão da portaria.
Uma
nota técnica da Assessoria Jurídica do Conselho Indigenista Missionário (Cimi)
aponta que a vigência da Lei 14.701, a “Lei do Marco Temporal”, também não impede que o governo publique a portaria, no caso
desta TI.
“Mesmo
que aplicado o marco temporal, ele não atinge o povo Tupinambá, já que os
indígenas sempre ocuparam porções de terras em toda a extensão do território”
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Lei 14.701 e marco
temporal não afetam a TI
Em 2009,
a TI Tupinambá de Olivença foi identificada e delimitada pela Funai com 47,3
mil hectares, distribuídos entre os municípios de Ilhéus, Buerarema e Una, no
sul da Bahia. Desde então, o processo demarcatório da TI foi alvo de uma série
de questionamentos jurídicos e administrativos – todos eles já superados,
apontam os informes e a nota técnica.
Os
principais questionamentos envolvem a tese do “marco temporal” e a recente Lei
14.701, promulgada em dezembro de 2023 pelo Congresso Nacional. A tese
ruralista limita as demarcações apenas àquelas terras que estivessem sob a
posse dos indígenas em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da
Constituição Federal, ou em disputa naquela data, nos casos de expulsão dos
indígenas.
O
marco temporal foi julgado inconstitucional pelo Supremo
Tribunal Federal (STF) em processo de
repercussão geral em 2023, mas foi reinserido pelo Congresso na Lei 14.701,
junto a uma série de outros dispositivos que buscam inviabilizar demarcações de
terras indígenas. A norma se encontra em vigor e é questionada no STF, devido à
sua flagrante inconstitucionalidade.
Além
dos questionamentos judiciais à Lei e do fato de o marco temporal já sido
declarado inconstitucional, no caso específico da TI Tupinambá de Olivença, a
demarcação não seria impactada pela tese, dado que a ocupação contínua do
território pelo povo é amplamente documentada e comprovada.
Segundo
a nota técnica da assessoria jurídica do Cimi, “mesmo que aplicado o marco
temporal, ele não atinge o povo Tupinambá, já que os indígenas sempre ocuparam
porções de terras em toda a extensão do território”.
Inclusive,
prossegue o documento, “as áreas estavam registradas em nome de famílias
pertencentes ao povo. Essas famílias são conhecidas como ‘mourões’, grupos
familiares que nunca saíram do território e que o esbulho intensificado no
meado do século passado não conseguiu afastá-los daquelas terras”.
Outro
ponto levantado pelo documento se refere à não retroatividade da Lei. A
Constituição prevê, conforme explica a análise jurídica, que uma nova lei não
pode prejudicar “atos jurídicos perfeitos” – ou seja, aqueles já concluídos de
acordo com a legislação vigente.
Isso
significa que a Lei 14.701 não pode ser aplicada ao caso da TI Tupinambá de
Olivença, uma vez que a tradicionalidade da ocupação indígena da área já foi
reconhecida por meio da aprovação e publicação do RCID.
Por
isso, explica a nota, o Estado não pode voltar atrás no reconhecimento
territorial do povo Tupinambá, pois se trata de um “direito constitucional
declarado, preexistente e inato dos indígenas, conceitualmente ainda mais
protegido que o direito adquirido”.
Em
2023, um parecer da Consultoria Jurídica do MJ reconheceu a “regularidade do
procedimento administrativo de regulamentação fundiária e demarcação” da TI
Tupinambá de Olivença, “não se vislumbrando qualquer óbice jurídico” para a
emissão da portaria
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MJ e Funai reconhecem
que não há impedimento para portaria
A
nota técnica também cita uma série de documentos da Funai e do próprio MJ
atestando a tradicionalidade da ocupação Tupinambá, a regularidade do
procedimento administrativo e a inaplicabilidade do marco temporal neste caso.
Um
informe técnico da Funai de 2018 afirma que o relatório de identificação e
delimitação da TI faz “uma descrição pormenorizada do processo de ocupação no
tempo e atual dos indígenas na área delimitada, atestando a intensificação
gradual do esbulho territorial” do território Tupinambá, intensificado ao longo
das décadas de 1950 e 1960.
O
relatório de 2009 também comprova “a manutenção do exercício da posse dos
indígenas em todas as regiões e unidades de paisagem que compõem a proposta de
delimitação” da TI.
Uma
das evidências dessa posse, segundo o informe de 2018, é o fato de que, durante
levantamento da malha fundiária existente na área delimitada, foram
identificados “uma série de imóveis pertencentes a indígenas Tupinambá”
espalhados por toda a terra indígena.
O
órgão destaca que os indígenas apresentaram, inclusive, guias de recolhimento
de imposto territorial em 1988, demonstrando a ocupação do território no ano de
promulgação da Constituição Federal – e afastando, assim, a possibilidade de
aplicação do marco temporal.
Além
disso, já em 2023, um parecer da Consultoria Jurídica do MJ reconheceu a
“regularidade do procedimento administrativo de regulamentação fundiária e
demarcação” da TI Tupinambá de Olivença, “não se vislumbrando qualquer óbice
jurídico” para a emissão da portaria.
“Nós
acreditávamos que nesse governo que está agora seria mais facilitado o diálogo,
que a gente poderia encontrar os caminhos para que as questões fundiárias
fossem resolvidas”
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Vontade política
Um
ano atrás, o presidente Lula iniciava seu terceiro mandato à frente do governo
federal com a expectativa de uma atenção maior à pauta indígena, simbolizada
pela criação do Ministério dos Povos Indígenas (MPI) e pela promessa de
destravamento das demarcações – postura diametralmente oposta à de seu
antecessor, Jair Bolsonaro.
No
entanto, as promessas de celeridade nos processos demarcatórios não têm se
convertido em resultados e ações práticas. Das 14 homologações de TIs
inicialmente prometidas, apenas dez foram efetivamente assinadas pelo
presidente da República.
Em
mais de 500 dias de governo, somente três TIs tiveram os estudos concluídos e
foram delimitadas pela Funai, e nenhuma portaria declaratória foi publicada
pelo MJ.
Hoje,
existem 47 terras indígenas já identificadas e delimitadas no Brasil. Destas,
segundo informação do próprio governo, pelo menos 25 estão aptas para a expedição da Portaria
Declaratória. A última portaria foi emitida pelo MJ há seis anos, em 2018: a da
TI Kaxuyana-Tunayana, no Pará.
Em
abril de 2024, o recuo no anúncio da homologação de quatro terras indígenas
causou frustração nas lideranças dos povos afetados, que tinham expectativa de
que o anúncio fosse feito durante
o evento de encerramento do Conselho Nacional de Políticas Indigenistas (CNPI).
Na ocasião, apenas duas terras indígenas foram homologadas.
Também
nestes casos, o governo Lula decidiu contrariar pareceres técnicos de órgãos do
próprio poder Executivo que apontaram não haver impedimentos legais e jurídicos
para as homologações. A Casa Civil, chefiada pelo ministro Rui Costa, admitiu que, “por cautela”, optou por “agir com maior segurança social e jurídica”.
Além
da falta de vontade política em relação às demarcações, Ramon Tupinambá também
se queixa da dificuldade encontrada para dialogar com autoridades responsáveis
pelo processo de regularização fundiária das terras de seu povo. Até o final
desta semana, eles esperam ser recebidos pelo ministro da Justiça em uma
reunião para tratar do tema.
“Nós
queremos entender também o porquê dessa dificuldade de nos receber dentro do
Executivo. Nós acreditávamos que nesse governo que está agora seria mais
facilitado o diálogo, que a gente poderia encontrar os caminhos para que as
questões fundiárias fossem resolvidas. Mas a gente chega a Brasília e topa com
as portas fechadas”, questiona a liderança.
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Idas e vindas: 15 anos
de espera pela portaria declaratória
A
luta do povo Tupinambá de Olivença pelo reconhecimento de seu território
tradicional remete a pelo menos um século atrás. O Relatório Circunstanciado de
Identificação e Delimitação (RCID) da Funai cita documentos da imprensa que, já
na década de 1930, registravam solicitações feitas pelo Caboclo Marcelino,
liderança histórica do povo, ao já extinto Serviço de Proteção ao Índio (SPI).
Reivindicações
do tipo também foram registradas na década de 1980 junto à Funai, criada em
1967 para substituir o SPI. Após décadas de luta, em 2004, o órgão finalmente
cria o Grupo Técnico (GT) responsável por identificar e delimitar a TI.
Os
estudos são concluídos em 2009, com a publicação do RCID, e recebem cinco
contestações administrativas, as quais são respondidas pela Funai em 2012 e
remetidas ao MJ. Tem início, então, um sinuoso caminho de idas e vindas
administrativas que já se estende por 12 anos e perpassou, sem encaminhamento
efetivo, quatro diferentes governos.
Em
2014, sob o governo Dilma, o processo demarcatório é devolvido pelo MJ à Funai
para averiguação em relação a diversas questões, entre elas o marco temporal;
no mesmo ano, a Funai responde reafirmando regularidade do processo
administrativo de demarcação da TI.
O
processo segue parado até 2017, quando – já sob o governo de Michel Temer – a
Consultoria Jurídica do MJ conclui que a demarcação é regular. O ministério,
contudo, não aprova a análise e devolve o processo, mais uma vez, à Funai.
Agora, um novo elemento se soma às averiguações: o Parecer 001/2017, da AGU.
Em
2018, a Funai faz um novo informe técnico, reafirmando, mais uma vez, a
regularidade do processo – agora também em relação ao Parecer da AGU. No ano
seguinte, já sob o governo Jair Bolsonaro, o então ministro da Justiça, Sérgio
Moro, devolve 27 processos demarcatórios à Funai para averiguação com base no
Parecer 001/2017 da AGU – entre eles, o da TI Tupinambá de Olivença.
Mais
um ano se passa até que, em 2020, o STF suspende a validade do Parecer da AGU. Em seguida, o Ministério
Público Federal (MPF) recomenda que Funai devolva os processos ao MJ “para seguimento imediato dos
respectivos processos de demarcação”. Os processos retornam, mas o governo
Bolsonaro mantém sua promessa de não demarcar nenhuma TI.
Já
sob o governo Lula, em 2023, a Secretaria de Acesso à Justiça do MJ emite
parecer atestando a regularidade da demarcação da TI Tupinambá de Olivença, sem
“qualquer óbice jurídico” para a expedição da portaria. O argumento técnico não
é suficiente para que o primeiro titular da pasta, Flávio Dino, decida declarar
a tradicionalidade da TI.
Já
em 2024, a Sexta Câmara do MPF pede informações ao MJ – já sob a gestão do
ministro Ricardo Lewandowski – sobre o andamento do processo. A resposta é que,
agora, o objeto de questionamento é outro: o processo foi devolvido à
Secretaria de Acesso à Justiça, mais uma vez, para uma “reanálise” à luz da Lei
14.701.
Fonte:
CIMI
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