sábado, 15 de junho de 2024

Quantas foz do Amazonas “pagam” a catástrofe climática no RS?

A Petrobras registrou um lucro líquido de R$ 124,6 bilhões em 2023, o segundo maior nos 70 anos da companhia. O lucro recorde da história da estatal ocorreu no ano anterior, em 2022, quando bateu 188,3 bilhões de reais. Nos últimos anos, a estatal brasileira tem sido uma das maiores pagadoras de dividendos entre as petroleiras do planeta. Inclusive para reforçar o caixa do governo brasileiro, seu acionista controlador, que abocanha cerca de um terço dos recursos distribuídos a detentores de seus papéis.

De 30 de abril a 10 de junho deste ano, o mesmo governo federal que recebe uma fatia considerável dos lucros da Petrobras desembolsou R$ 85,7 bilhões para ajudar o Rio Grande do Sul, estado atingido pela maior catástrofe climática de sua história. Mas, como as águas que cobriram boa parte do território gaúcho ainda estão recuando, o custo final da tragédia ainda é uma incógnita. Cálculos preliminares apontaram para um gasto de R$ 120 bilhões pelo governo federal somente neste ano. Algo equivalente ao que a Petrobras lucrou no ano passado, mas que não vai integralmente para os cofres da União.

A vulnerabilidade extrema do Rio Grande do Sul a tempestades, inundações e secas foi mostrada em 2015 por um estudo encomendado pelo próprio governo federal. Eventos que, indicou o estudo, se tornarão cada vez mais frequentes e intensos, não apenas no Sul, mas em todo o Brasil, devido às mudanças climáticas. Eventos que não se restrigirão ao Sul, como as cada vez mais graves inundações no nordeste e sudeste do país têm mostrado. E que, como já comprovado por um sem-número de outros estudos científicos, são provocadas majoritariamente pela queima dos combustíveis fósseis, os mesmos que a Petrobras produz e comercializa.

O caminho para frear esses estragos já é conhecido: é urgente eliminar petróleo, gás e carvão da matriz energética mundial, de modo a conter as mudanças climáticas. O que envolve acelerar a implantação de fontes renováveis de energia e reduzir a produção e o consumo de combustíveis fósseis – o “transitioning away” acordado por todos os países do mundo, incluindo o Brasil, no documento final da 28ª edição da Conferência do Clima das Nações Unidas (COP28), realizada em Dubai em novembro do ano passado.

No entanto, no mesmo país da catástrofe climática do Rio Grande do Sul, cujo custo ainda é incerto, e que tem possibilidades reconhecidas de liderar a transição energética do planeta, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva defende a ampliação da exploração de petróleo. Pior: na foz do Amazonas – uma região de alta sensibilidade ambiental, onde não se conhece os impactos socioambientais da atividade petrolífera, mas que, já se sabe, pode contaminar o litoral de países vizinhos ao Brasil em poucas horas em caso de vazamento de petróleo. E onde a mesma Petrobras já teve de interromper a perfuração de um poço por causa de um acidente mecânico causado pelas fortíssimas correntes marítimas da região.

Mas, para Lula, explorar petróleo na Foz do Amazonas fará o Brasil “dar um salto de qualidade extraordinário”. Lula ainda disse que”não vamos jogar fora nenhuma oportunidade de fazer esse país crescer”.

O problema é que a conta não fecha. Ainda mais porque, no mesmo dia em que Lula e a presidente da Petrobras, Magda Chambriard, defenderam os combustíveis fósseis, a Agência Internacional do Petróleo (AIE) divulgou números mostrando que a demanda mundial por petróleo atingirá um pico em 2029 e começará a cair gradualmente a partir do ano seguinte. Além disso, a Agência calcula que já em 2030 haverá um grande excedente de petróleo no mercado, de cerca de 8 milhões de barris por dia – 2 vezes e meia o volume produzido atualmente pelo Brasil. Isso significa queda dos preços, com consequente redução de receitas, impostos e royalties oriundos do combustível.

Também é preciso destacar que não precisamos sair do Brasil para verificar que atividade petrolífera é concentradora de renda. Mesmo a maior arrecadação governamental com base no petróleo não se traduz em redução das desigualdades sociais – vide o estado do Rio de Janeiro e cidades beneficiadas com grande volume de royalties, como São Sebastião, no litoral paulista. No entanto, os estragos derivados da queima dos combustíveis fósseis, como os eventos climáticos extremos, atingem a todos, mas principalmente a população preta e pobre. O Rio Grande do Sul é a prova mais recente disso. Mas não a única.

A catástrofe gaúcha escancarou a urgência que temos de acelerar medidas de mitigação e adaptação às mudanças climáticas no Brasil, sem falar nos investimentos em recuperação depois da porta climática arrombada. Isso custa dinheiro, e não é pouco. Mas não é a suposta renda da exploração de mais combustíveis fósseis que cobrirá essa conta, nem bancar a transição energética, nem promover desenvolvimento social e econômico. Apostar nisso é colocar o cachorro correndo atrás do rabo, e com o imenso risco de não sobrar nada do cachorro. As cifras – e as crescentes tragédias climáticas – estão aí para comprovar.

 

•           Os desafios da reconstrução das cidades do Rio Grande do Sul. Por Raquel Rolnik, no Correio da Cidadania

Com as águas dos rios e lagos gaúchos finalmente baixando, começamos a enfrentar o complexo tema da reconstrução. Há mais de 76 mil pessoas vivendo neste momento em abrigos e 581,6 mil desalojados – conforme atualização da Defesa Civil nesta segunda-feira (20) –, o que evidencia que a tarefa de criar imediatamente alternativas para esses refugiados climáticos não é banal.

Bairros inteiros – e até municípios que ficaram debaixo d’água – terão de ser reconstruídos, exigindo, em muitas situações, o reassentamento. Os desafios desta empreitada são para além da capacidade das lideranças governamentais oferecerem respostas ágeis e dos bilhões envolvidos nesta operação. A questão – eternamente negligenciada – é como a reconstrução pode de fato ocorrer em novas bases do ponto de vista socioambiental, apresentando respostas não apenas para as formas de ocupação urbana diante dos desafios climáticos, mas também do histórico racismo ambiental, um dos elementos do modelo de desigualdade socioespacial que condena as populações de menor renda a viverem sob as condições urbanísticas mais vulneráveis aos desastres climáticos.

Durante o período em que exerci o mandato de relatora especial para o direito à moradia adequada do Conselho de Direitos Humanos da ONU (2008-2014), pude conhecer in loco processos de reconstrução pós-desastres, em decorrência do terremoto no Chile e no Haiti, em 2010, e do tsunami nas Ilhas Maldivas, após 2004. Além disto, ao lançar o tema “mudanças climáticas e o direito à moradia” como objeto de um relatório temático – disponível aqui – pude receber centenas de relatos e relatórios, dialogar com organizações internacionais humanitárias que atuam nestas situações e identificar as armadilhas presentes em processos como estes.

Uma das mais flagrantes é a constante violação dos direitos à moradia, sobretudo em situações de reassentamento, ou seja, de transferência das comunidades para outro lugar que garanta permanência e segurança.

No relatório apresentado em 2009, apontei inúmeros casos: pescadores que foram removidos de seus locais de moradia original, em função do “risco de inundação”, para conjuntos habitacionais em área de montanha, impossibilitando-os de continuar a exercer seu ganha pão e modo de vida, enquanto seus locais originais de moradia e trabalho foram ocupados por resorts de luxo à beira-mar. Moradores de ilhas no Pacífico que foram impedidos de continuar vivendo ali e obrigados a residir em casas de alvenaria que se assemelhavam às casas do subúrbio norte-americano, quando sua forma original de morar – sobre palafitas – tinha uma relação histórica com marés e áreas de inundação sem que isso ameaçasse suas vidas.

Poderia continuar oferecendo muitos exemplos, mas em todos eles a marca da colonialidade, do racismo ambiental e do extrativismo está presente: na negação dos direitos à permanência para comunidades estabelecidas segundo lógicas e formas de ocupação não estruturadas pela propriedade individual registrada; na captura dos espaços de vida e trabalho de comunidades não brancas e pobres por usos rentáveis do ponto de vista dos investidores e capitais envolvidos; do desrespeito às formas tradicionais de organizar espaço e a relação com a natureza destas comunidades e da imposição de modelos carbocêntricos.

Em resumo, as operações de reconstrução são definidas a partir das agendas dos complexos geopolíticos e econômicos envolvidos nestes processos, ou seja, da origem dos capitais que investem (e seus desejos de recuperação de custos), das empreiteiras e conjuntos de fornecedores de serviços e suas capacidades de inserir e ofertar seus produtos e serviços nestes circuitos, enfim, dos atores com poder de participar dos processos decisórios.

Não é de se estranhar que as comunidades afetadas tenham pouco ou nenhum lugar de fala e decisão nestes processos, especialmente nas situações de recuperação pós-desastre, quando elas estão fragilizadas, totalmente focadas nos desafios de sua sobrevivência imediata. E mais: a urgência acaba justificando que mesmo os mecanismos existentes de escuta, participação e defesa de direitos sejam desativados.

Desta forma a reconstrução acaba sendo mais do mesmo… As máquinas mais azeitadas de produção de reassentamento são aquelas que produziram as cidades do século 20 sob um modelo que justamente promoveu o desastre (impermeabilização, negação dos elementos da natureza e seus ciclos, trinômio asfalto/concreto/ferro, racismo ambiental, colonialidade…) e, portanto, são estas que são acionadas e estão prontas para capturar os bilhões da reconstrução. Esta é a crônica da morte anunciada. Mesmo que neste momento o modelo tóxico que nos trouxe até aqui esteja já de fato revelando seu potencial de destruição.

 

Fonte: Por Alexandre Gaspari, no ClimaInfo

 

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