Por que
PEC das Praias vai na contramão da crise climática
Em
2021, a professora aposentada Clara Araújo, de 65 anos, viveu "noites de
terror" na sua casa à beira da praia do Morro das Pedras, em Florianópolis
(SC). Uma combinação de ciclone extratropical e maré alta fez o mar avançar
sobre as propriedades da região, destruindo decks, calçadas, piscinas e
ameaçando a estrutura das residências.
"Meus
vizinhos saíram de casa, mas eu fiquei. De madrugada, quando eu ia ver como
estava a situação, precisava usar um guarda-chuva para me proteger da água do
mar", relembra Araújo.
É
nesse contexto de aquecimento global, aumento do nível do mar, erosão de
praias, inundação de cidades à beira-mar e perda de biodiversidade no litoral
brasileiro que está sendo discutida a PEC das Praias. A proposta é transferir
os terrenos de marinha da União para estados e municípios e, de forma
obrigatório e por meio de pagamento, para proprietários particulares que já
ocupam essas áreas.
Os
terrenos de marinha são uma faixa de 33 metros ao longo do litoral e dos rios e
lagoas influenciados pelas marés. São demarcados a partir da Linha de Preamar,
que foi delimitada pela média das marés altas no ano de 1831. Os cidadãos podem
ter residências ou empreendimentos nesses locais com base em dois instrumentos:
inscrição de ocupação e aforamento.
"A
PEC tira do Estado brasileiro a possibilidade de fazer a gestão dessas áreas
vulneráveis. Está na hora de o Brasil assumir essas áreas como muito
importantes para combater a erosão e inundação e para fazer com que sejam uma
proteção da linha da costa, da zona costeira, das cidades e das pessoas",
avaliou a coordenadora-geral do Departamento de Oceano e Gestão Costeira do
Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA), Marinez Eymael Garcia
Scherer.
Um
estudo do MapBiomas mostrou que, entre 1985 e 2022, o espaço de praias, dunas e
areais diminuiu 15% no Brasil – em Santa Catarina, a queda foi de 21,5%. Clara
Araújo viu essa mudança no Morro das Pedras, onde mora há 42 anos. Ela observou
dunas e vegetação serem levadas pelo mar.
Por
causa das fortes erosões dos últimos anos, a prefeitura foi obrigada pela
Justiça a fazer uma obra emergencial para proteger as residências, construindo
uma barreira com toras de eucaliptos e sacos de areia. A professora aposentada
não esperou qualquer mudança na legislação. "Acabei de vender a casa. A
manutenção estava muito alta", contou.
• A PEC é boa para os proprietários?
A
PEC das Praias tramitou por 11 anos até ser aprovada na Câmara dos Deputados,
em fevereiro de 2022. Não chamou muita atenção da opinião pública até a
realização de uma audiência no Senado, no fim de maio, e de uma discussão nas
redes sociais entre a atriz Luana Piovani, contrária à nova lei, e o jogador
Neymar, a favor da medida.
O
senador Flávio Bolsonaro, relator da PEC na Comissão de Constituição e Justiça
(CCJ), deu seu voto favorável à norma. "A proposta apresenta critérios
claros sobre a propriedade desses bens, conferindo segurança jurídica às partes
envolvidas", escreveu em seu voto.
O
advogado e presidente do Instituto Brasileiro de Terrenos de Marinha, Nabih
Henrique Chraim, ressalta que a PEC não altera a lei ambiental e nem muda a
ocupação do solo. "No entanto, no texto atual, a PEC é ruim para os
particulares. Porque ela trata de uma transferência onerosa, ou seja, tem que
ser paga em até dois anos, sem opção de escolha para o cidadão", afirmou.
Atualmente,
há dois instrumentos jurídicos para se ter imóveis em terrenos de marinha. O
primeiro é a inscrição de ocupação, que reconhece o aproveitamento da área, mas
não gera um direito real sobre a propriedade.
O
segundo é o aforamento, que garante os direitos de propriedade. O interessado
paga 83% do valor da área, enquanto a União permanece com 17% do domínio útil.
"Mas mesmo esses 17% podem ser adquiridos através do que é chamado de
remição de foro", explicou o advogado. Na avaliação do especialista, a PEC
não inova tanto porque o aforamento é muito semelhante à ideia apresentada
pelos legisladores.
Nos
dois casos também há taxas anuais: 2% do valor do terreno na inscrição de
ocupação e 0,6% no aforamento. Ao venderem os terrenos, os proprietários
precisam pagar uma taxa de 5%, chamada de laudêmio. A PEC acaba com essas
taxas. Os proprietários passariam então a pagar só o IPTU.
O
Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos estima haver 2,9
milhões de imóveis em terrenos de marinha, mas apenas 565 mil cadastrados – com
arrecadação de R$ 1,1 bilhão em taxas em 2023. De acordo a pasta, a PEC
impactaria diretamente na proteção das áreas costeiras e traria riscos como
especulação imobiliária, impactos ambientais descontrolados e insegurança
jurídica.
Na
audiência do Senado, a representante do Movimento dos Pescadores e Pescadoras
Artesanais, Ana Ilda Pavão, disse que as comunidades tradicionais também podem
sair perdendo. Argumentou que elas já sofrem com o assoreamento, desmatamento e
alagamentos. "O teor dessa PEC, no fundo, é a urbanização das orlas, são
os grandes empreendimentos. Quem vai lucrar? Não somos nós. Nós só vamos
perder. Essa PEC precisa ser revista. Muito tem se falado aqui, mas se
esqueceram de falar da vida", opinou.
• Florianópolis e a emergência
climática
Para
Scherer, que também é professora da Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC), a PEC favorece a ocupação dos terrenos de marinha, enquanto a discussão
deveria focar em uma boa gestão das áreas, incluindo a retirada controlada em
certos casos. "É a ideia de pouco a pouco não deixar mais ocupar as áreas
vulneráveis. Porque quanto mais ocupadas, mais as pessoas e a infraestrutura
vão sofrer impactos. E acabamos acionando Defesa Civil, estado de emergência e
gastando muitos recursos gerenciando o problema e não o planejamento",
afirmou.
Florianópolis
é um exemplo da falta de planejamento e de como a situação pode piorar, opinou
Scherer. A erosão tem diminuído a faixa de areia e destruído propriedades em
diversos pontos. As principais medidas adotadas para enfrentar o problema foram
três engordamentos de praias, em Canasvieiras, Ingleses e Jurerê, e duas
barreiras de proteção, em Armação e no Morro das Pedras. O investimento foi
próximo de R$ 100 milhões, de acordo com a professora.
"Muitas
vezes foram ocupadas áreas de dunas frontais, com vegetação. Se você olhar, a
prefeitura teve que colocar recursos em áreas que foram ocupadas até a primeira
linha. São locais em que a praia, um ambiente muito vivo, não teve espaço para
se recuperar", explicou Scherer. De acordo com a pesquisadora, algumas
ocupações são históricas, mas podem sofrer processos erosivos cada vez mais
fortes. "Não há uma visão de cidade, e não é só Florianópolis, com essa
lente de emergência climática que estamos vivendo".
O
prefeito de Florianópolis, Topazio Neto, defendeu a PEC na audiência no Senado.
A DW questionou se não seria mais lógico trabalhar com a retirada de algumas
estruturas da orla para combater a erosão. "Eu acho que sim, mas esse é
outro tema", argumentou. "A PEC trata da regularização da
propriedade. Se eu moro na beira do mar, por exemplo, e acho que a maré vai
subir e vai comer um pedaço do meu terreno, talvez eu não tenha interesse em
comprar aquele pedaço do terreno de marinha".
Até
por isso Topazio Neto acha que a compra dos terrenos de marinha deveriam ser
uma opção e não uma obrigação. "A grande vantagem para Florianópolis,
efetivamente, é regularizar e identificar todas as propriedades que têm uma
parte de terreno de marinha. Porque isso hoje, quando você quer vender ou
construir, é sempre uma dificuldade maior para o proprietário porque não tem
isso na escritura dele e registro em cartório".
A
Secretaria do Patrimônio da União (SPU) estima haver 30 mil unidades em
terrenos de marinha na capital catarinense, a grande maioria não demarcada.
O
prefeito também criticou a falta de investimentos do governo federal. "A
União não fez nenhum investimento ao longo dos anos para preservar os terrenos
dela, digamos assim, que foram erodidos pelo mar. Temos diversos problemas e
nunca tivemos uma obra pública federal para tentar preservar suas terras."
• Acesso às praias e privatização
Uma
das críticas em relação à PEC é que os proprietários dos terrenos de marinha
poderiam não dar acesso às praias. Atualmente a prática é proibida, mas muitas
vezes é preciso ação judicial para garantir esse direito. Há casos também de
empreendimentos em que o acesso à orla só é permitido mediante fiscalização de
seguranças privados. Após a repercussão, Flávio Bolsonaro disse que vai
adicionar no texto o livre acesso à praia e ao mar.
A
possibilidade de privatização também sacudiu as redes sociais. Pelo menos de
forma explícita, não há nada na PEC que possa ser interpretado dessa forma.
Marinez Scherer, no entanto, chama a atenção para o Projeto de Lei 4444, de
2021, que criaria uma Zona Especial de Uso Turístico. A ideia é que os
municípios possam destinar 10% das orlas e praias marítimas, estuarinas,
lacustres e fluviais para os projetos com "restrição de acesso a pessoas
não autorizadas". "Este projeto fala em privatização com todas as
letras", avaliou Scherer. "É um pacote".
¨ Um cercadinho na praia da exclusão. Por Cezar Brito
Arquivei
na minha memória de ribeirinho, nascido na sergipana Propriá, o olhar amigo da
alagoana Porto Real de Colégio e a admiração pela histórica e resistente
Penedo. Na alagoana capital passei parte das minhas férias, solidifiquei
grandes amizades e, durante alguns belos anos, compartilhei o tempo no remanso
de um pequeno apartamento em Jatiúca. Quando a advocacia me deu a honra de
presidir a OAB Nacional, junto com o presidente Omar Coêlho, fizemos do bairro
Jacarecica a sede e o local de encontro da advocacia alagoana. Da terra de
Pontes de Miranda guardo, com muito orgulho, o título de Cidadão Maceioense.
Tenho
na Alagoas de Graciliano Ramos, portanto, uma relação de afetividade muito
forte, inclusive por ser a terra de nascença de Marluce. Não sem razão advogo,
há algumas décadas, para a categoria petroleira alagoana que fez da Petrobrás
uma referência mundial. E foi com a credencial de apaixonado pelas coisas
alagoanas que no feriado de Ano Novo, no já velho 2018, convidei um grande
amigo brasiliense para conhecer o “azul piscina” do litoral alagoano, bem
declamado pelo poeta Carlos Moura. Gosto de exibir o Nordeste pelo meu
insuspeito óculo.
Depois
que o apresentei às praias de Maceió – de Guaxuma à Avenida – apostei que as
localizadas no Litoral Norte seriam o encerramento, com estilo e charme, do
nosso vagar pelo natural beleza nordestina. E assim partimos para a nossa
aventura. Ou “desventura em série”. É que – já no início do percurso pela BR
101 AL – as paisagens das primeiras praias estavam encobertas por mansões,
clubes privados e cercas com a visível placa de “propriedade privada”. Para não
ser injusto, alguns bares até permitiam o ingresso para fotografar o mar, desde
que houvesse a disposição de pagar um ingresso inflacionado pelo feriado
nacional. Não fosse o oásis do Mirante da Sereia, o meu convidado teria razão
quando brincou que a minha propaganda não passava de uma miragem ufanista.
Desafiado
em minha honra sertaneja, segui litoral adiante: Barra de Santo Antônio, São
Miguel dos Milagres, Carro Quebrado, Praia do Toque, Porto de Pedras, Patacho,
Tatuamunha e outras praias por mim descritas como deslumbrantes. Todas
transformadas em rápidas paradas. Inesperadas e frustrantes passagens. É que,
mais uma vez, o ingresso ao mar estava bloqueado por mansões, clubes,
restaurantes e cercas de arame farpados. A nós, turistas de ocasião, restavam
as poucas brechas de areia que sobravam entre as afortunadas propriedades
privadas.
Diferentemente
das áreas privadas e protegidas por seguranças, nos espaços de intermédio,
paradoxalmente, não se permitia uma estrutura pública que garantisse um mínimo
de organização e conforto para o povo que frequentava as faixas de areia
sobrantes. E como privadas eram as demais áreas, inclusive as dos restaurantes
que impediam o livre acesso para o mar dos reservados, voltamos para Maceió com
fome de mar e alimentação.
Registro
essa “desventura” agora que tramita pelo Senado, com a relatoria do
senador Flávio Bolsonaro, a chamada PEC das praias. O projeto pretende incluir na Constituição Federal a
transferência para a iniciativa privada dos terrenos de marinha pertencentes à
União e, portanto, ao povo brasileiro. Em apertada síntese, ambiciona-se
legalizar a permanente grilagem de terras públicas, afastar o debate sobre os
danos ambientais, legitimar os muros das mansões que borram o azul-piscina do
mar, permitir as cercas dos barões que fazem da especulação um jogo sem
craques, edificar as grandes e vigiadas muralhas dos hotéis de luxo e, por fim,
traçar no mar uma linha divisória entre os donos dos privatizados terrenos de
marinha e os que não foram aquinhoados com riquezas materiais, o poder da
influência política ou o fama inimaginada.
Ao
tornar absolutamente normal a construção de um grande cercadinho privado em
torno das praias brasileiras, a PEC diz – sem bronzear o seu rosto excludente –
que restaria ao povo o consolo do uso de pequenas migalhas e brechas de areia
ainda não ocupadas pelos ricos de bens e pobres do bem. É que na chuteira da
ingratidão, a História mostra que a cerca não convive com a inclusão. E assim,
para o povo, o “pé na areia, a caipirinha, água de coco, a cervejinha”,
nogueiramente escrevendo, não passariam de uma nostálgica canção de um tempo
que já passou.
Fonte:
Deutsche Welle/Congresso em Foco
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