terça-feira, 18 de junho de 2024

PL do estuprador: como as mulheres dominaram a narrativa e espancaram o bolsonarismo

O PL DO ESTUPRO É mais uma atrocidade entre as inúmeras proporcionadas pelo Congresso mais reacionário e fascista de todos os tempos.

O avanço repentino do projeto que equipara o aborto legal ao crime de homicídio na Câmara foi resultado de um acordo costurado entre Arthur Lira e a bancada evangélica há pelo menos um ano.

O presidente da Câmara manobrou para que a urgência fosse aprovada de forma simbólica, sem contagem de votos. A manobra faz parte do pacote de promessas com as quais Lira se comprometeu para garantir os votos que sacramentariam sua reeleição à presidência da Câmara no ano passado.

As eleições para a presidência das duas casas legislativas no ano que vem também entram nessa equação política. 

Além do acordo com Lira, o avanço do PL tem também como pano de fundo a sanha bolsonarista em fragilizar o governo e em afrontar Alexandre de Moraes, que tem atuado na trincheira da defesa do aborto legal no Supremo Tribunal Federal.

·        A jogada parecia perfeita, mas o tiro acabou saindo pela culatra.

Soma-se a isso a necessidade de colar em Lula a imagem de “abortista” e manter a base eleitoral animada para as eleições municipais — como se sabe, o tema é uma chupeta com mel para os fanáticos teleguiados pelo bolsonarismo.

Esse é o retrato fiel de como o bolsonarismo sequestrou a vida parlamentar brasileira. Um bando de reacionários, majoritariamente formada por homens velhos de idade e de espírito, legislando sobre os corpos de meninas e mulheres para avançar no tabuleiro da jogatina política.

O autor do projeto, Sóstenes Torres, do PL, é um fantoche do pastor fundamentalista Silas Malafaia, enquanto Arthur Lira é um acusado pela ex-mulher de estupro. É esse o tipo de gente que quer obrigar crianças e adolescentes a parir os filhos de seus estupradores.

A jogada parecia perfeita, mas o tiro acabou saindo pela culatra. A reação contrária foi rápida, com uma comunicação eficiente que ajudou a levar milhares de pessoas para as ruas nos dias que se seguiram.

Nas redes sociais, a aberração recebeu nomes que ajudaram a escancarar o que de fato ele representa, como “PL do Estupro”, “PL dos Estupradores”, “PL da Gravidez Infantil”. As mamadeiras de piroca e as narrativas fabricadas pelo esgoto bolsonarista não foram capazes de segurar a avalanche liderada pelas mulheres nas redes e nas ruas.

Diferente do que costuma acontecer quando se trata de embates nas pauta dos costumes, o projeto foi rejeitado por ampla maioria nas redes sociais. 

·        Equiparar a pena de uma vítima de estupro com a de um assassino não tem nada de “pró-vida”.

A reação não partiu apenas de feministas e dos progressistas, mas também de parte dos conservadores que não foram completamente cegos pelo fanatismo bolsonarista. Segundo monitoramento de redes sociais realizado pelo instituto de pesquisas Quaest, 52% dos brasileiros se posicionaram contra o PL do Estupro e apenas 15% a favor.

Na grande imprensa, jornalistas que não costumam se posicionar desceram do muro e deram opiniões fortes contra o projeto. A narrativa mentirosa “pró-vida” foi sumariamente engolida pela realidade dos fatos, algo raro ultimamente.

Ficou claro para a grande maioria da população que equiparar a pena de uma vítima de estupro com a de um assassino não tem nada de “pró-vida”, muito pelo contrário.

A bancada religiosa foi rebatizada nas redes de “bancada do estupro”, demonstrando claramente que o projeto de lei puniria o aborto de meninas e mulheres estupradas com mais anos de cadeia que os estupradores.

A comunicação adotada nas redes ajudou a alavancar uma reação forte e eficaz por parte dos progressistas, ajudando a encher as ruas e jogar contra as cordas aqueles que até então davam as cartas.

A reaçada da Câmara, que achou que entraria em campo com o jogo ganho mais uma vez, tomou um nó das mulheres progressistas. Este episódio mostra que é difícil mas não impossível vencer as disputas de narrativas forçadas pelos reacionários e ajuda a apontar novos caminhos para o enfrentamento no Congresso. 

O governo, por outro lado, demorou para se posicionar firmemente contra o projeto. Os parlamentares governistas pouco fizeram para impedir a urgência do projeto. O líder na Câmara, José Guimarães, afirmou que o tema “não é matéria de interesse” do governo.

Ao ser indagado sobre o assunto após a cerimônia de encerramento da conferência anual da OIT, na Suíça, Lula se esquivou e se limitou a dizer que é um tema que está sendo discutido na Câmara.

·        Só depois que os progressistas reagiram, o governo se sentiu à vontade para se posicionar.

É compreensível que em um momento em que está sofrendo com derrotas sucessivas na Câmara e no Senado, Lula queira abrir mão de algumas brigas e evitar mais desgastes com um tema tão sensível. O governo avaliou que o possível desgaste seria desnecessário, já que a aprovação do PL era tida como certa.

Mas avaliou mal. Essa era uma excelente briga para comprar e chegar dando voadora. As pesquisas mostram que a grande maioria dos brasileiros — mais de 75% — é favorável ao aborto em casos de estupro.

Era hora de convocar as mulheres, fazer um pronunciamento pomposo em favor da vida das vítimas de estupro e colar nos oposicionistas a pecha de defensores de estupradores. Uma oportunidade rara foi desperdiçada. 

Só depois que os progressistas reagiram, controlaram a narrativa e fizeram a bancada do estupro recuar, que o governo se sentiu à vontade para se posicionar. Lira e Sóstenes tiraram o pé do acelerador do projeto e minimizaram uma questão que até então estavam tratando como prioridade.

Lula passou a tratar o projeto de lei como o que ele é: “uma insanidade”. Antes tarde do que nunca, mas que fique a lição para os próximos embates. A possibilidade de vitória nesse embate foi mal calculada e a postura acovardada em um primeiro momento não serviu para nada além do que se desgastar com seu próprio eleitorado.

Aos progressistas e democratas cabe mirar-se no exemplo das mulheres que não titubearam e em poucas horas mobilizaram milhares de pessoas nas redes e nas ruas. Em pouco tempo elas fizeram a reaçada colocar o rabinho entre as pernas e forçou o governo a tratar o tema com a importância que ele merece. 

Mais uma vez, o bolsonarismo usa o corpo de mulheres como barganha política, apostando que sairão sempre vitoriosos tendo o controle das narrativas.  Mas as mulheres tomaram para si a briga, dominaram a narrativa e espancaram a reaçada com a realidade dos fatos.

Os bolsonaristas saíram chamuscados deste episódio, algo raro nos últimos tempos. Ficaram isolados no debate e tiveram o seu lado mais perverso e desumano escancarado aos olhos da opinião pública. Que sirva de exemplo para os próximos embates.

 

¨      Apesar da indignação, evangélico fundamentalista autor da PL do Estupro diz que não vai recuar e chama opositoras de "abortistas"

O deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), bolsonarista fervoroso, membro da bancada evangélica e fundamentalista religioso que encabeça o Projeto de Lei 1904/2024, conhecido como "PL do Estupro", que equipara a interrupção de gestação acima de 22 semanas ao crime de homicídio, desafiou a pressão das ruas e afirmou que não vai recuar em sua proposição. 

Apesar do repúdio ao projeto ter motivado milhares de pessoas a saírem às ruas nos últimos dias em todo o país, Cavalcante disse em entrevista ao programa "Fantástico", da TV Globo, na noite deste domingo (17), que o texto da proposta é "light", omitindo o fato de que, caso aprovado, crianças, adolescentes e mulheres que tenham que se submeter a um aborto para interromper uma gravidez decorrente de estupro serão criminalizadas - com penas maiores que a do próprio estuprador. 

"O cerne do projeto, a defesa do bebê indefeso de 5 meses e meio, eu não vou abrir mão em nenhum ponto", declarou o deputado, que ainda se referiu a opositoras do projeto como "abortistas". 

"Então, o projeto é muito light, o projeto não é radical como as abortistas e as feministas estão querendo colocá-lo."

¨      Críticas ao "Fantástico"

O fato do programa "Fantástico", da TV Globo, ter concedido espaço a Sóstenes Cavalcante para expor seus posicionamentos reacionários e fundamentalistas sobre o PL do Estupro vem gerando críticas nas redes sociais. 

A vereadora Monica Benício (PSOL), do Rio de Janeiro, classificou a entrevista o membro da bancada evangélica como "revoltante". 

"É revoltante, mas não surpreendente, que Arthur Lira e Sóstenes Cavalcante tenham espaço no #Fantástico pra defenderem o PL do Estuprador. Enquanto isso, nas redes e nas ruas, as mulheres estão gritando para serem ouvidas em suas dores e demandas. Será que o jornalismo hegemônico e liberal vai, em algum momento, parar de dar palco pra extrema direita? Nenhuma mulher ou qualquer pessoa que gesta deveria ser punida por abortar. Até quando vamos ter que lutar por nossos corpos, nossa autonomia e nossa liberdade?". 

¨      PL do Estupro é repudiado pela sociedade 

Conhecido como PL do Estupro, o Projeto de Lei 1904/2024, que equipara a interrupção de gestação acima de 22 semanas ao crime de homicídio, é rejeitado por 88% das pessoas que votaram na enquete publicada pelo site da Câmara dos Deputados até o início da tarde deste domingo (16). A consulta virtual já conta com mais de 1 milhão de participantes.

Às 14h15 do domingo, 925.157 pessoas haviam registrado "discordar totalmente" da proposta de autoria do deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL-RJ). O apoio ao projeto contava com 113.196 internautas. O resultado representa um crescimento na desaprovação em relação ao que era registrado na tarde da quinta-feira (13), quando o índice de rejeição era de 72%.

Além da enquete, o PL do Estupro tem enfrentado protestos nas principais cidades brasileiras. Neste sábado (15), milhares de pessoas ocuparam a Avenida Paulista. As manifestações começaram na quinta-feira e já há atos convocados para segunda-feira (17).

A deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP) celebrou nas redes sociais a reação popular em relação ao PL 1904/2024. "Pra quem achou que ia destruir o direito das mulheres, meninas e pessoas que gestam ao próprio corpo na surdina: Nós sempre estaremos aqui. Dos fandoms de divas pop aos movimentos feministas, nos agigantando pra que vocês não façam mais vítimas", afirmou a parlamentar. "E vocês continuarão minúsculos", postou, se referindo à extrema direita.

 

¨      Petição para arquivar a PL do Estupro já tem mais de 146 mil assinaturas

petição que pressiona o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL) a arquivar o PL 1904/2024, chamado de PL do Estupro, alcançou mais de 146.563 assinaturas até a tarde desta segunda-feira (17). Ele foi lançado pela deputada Sâmia Bomfim (PSOL-SP) no sábado (15). 

Intitulada "Arquiva, Lira", a petição reforça os perigos do PL que visa equiparar a pena para o aborto realizado após 22 semanas ao crime de homicídio, até mesmo em casos de estupro. Na prática, o projeto vai afetar, principalmente, crianças, que são a maioria das vítimas de abuso sexual e demoram a ter a gravidez identificada por diversos fatores, como aponta a petição: "menores de idade demoram mais a compreender e conseguir denunciar a violência sofrida, bem como reconhecer os sintomas de gravidez; por fundamentalismo ou receio de retaliação, profissionais de saúde impedem ou mesmo retardam o acesso a um direito garantido por lei; são pouquíssimos hospitais com serviço de aborto legal, num país de dimensões continentais".

No X (antigo Twitter), Sâmia publicou que "não há remendo" para o projeto, já que alguns deputados e Arthur Lira pretendem fazer alguns ajustes ao PL após pressão e colocar uma deputada para ser relatora, para que ele continue avançando. "Usar mulheres na relatoria para legitimar o ataque a outras mulheres é uma velha arma conhecida do patriarcado. Não caímos nessa. O jogo está virando. É hora de dobrar a pressão. Semana decisiva", afirmou a deputada. 

·        Entenda o PL 1904/2024

O PL 1904/2024 foi apresentado na Câmara dos Deputados pelo deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) com a assinatura de outros parlamentares. Ele foi protocolado em maio, logo após o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), suspender uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) que restringia o acesso ao aborto legal em casos de estupro após 22 semanas de gestação.

De acordo com o texto do PL, ele equipara a pena do aborto ao crime de homicídio. "Quando houver viabilidade fetal, presumida em gestações acima de 22 semanas, as penas serão aplicadas conforme o delito de homicídio simples previsto no art. 121 deste Código”, diz o primeiro parágrafo do projeto. 

Essa proposta vale até mesmo para casos de abortos realizados em caso de estupro, que são permitidos pela legislação brasileira, que prevê três situações para a realização do aborto legal: estupro, risco de vida para a gestante e anencefalia do feto. 

O PL foi alvo de diversas críticas porque criminaliza e revitimiza mulheres e, principalmente, crianças vítimas de estupro, além de aplicar uma pena a essas pessoas muito maior do que a do próprio estuprador. 

Apesar disso, o projeto teve seu pedido de urgência aprovado por deputados bolsonaristas e da bancada evangélica em tempo recorde na Câmara na quarta-feira (12).

·        Risco de aumentar casos de gravidez infantil

As entidades contrárias ao PL 1904/2024 alertam que, se aprovado, o projeto vai prejudicar, principalmente, crianças de até 13 anos vítimas de estupro. Com isso, os movimentos temem um aumento recorde de gravidez infantil no país, que já atinge um número assustador: em 2023, mais de 12,5 mil meninas entre 8 e 14 anos foram mães, segundo dados do governo federal.

Outro dado, do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, mostra que, em 2022, 8 em cada 10 vítimas de violência sexual eram crianças e adolescentes e 61,4% das vítimas de estupro tinham, no máximo, 13 anos.

 

Fonte: Por João Filho, em The Intercept/Fórum

 

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