Os modelos
"cidades-esponja" que já existem no Brasil
Apontadas
como possíveis soluções a serem adotadas para tornar as cidades brasileiras
mais preparadas para enfrentar a nova realidade climática de eventos extremos
mais frequentes, as cidades-esponja, modelo criado na China e adotado também em
alguns países da Europa, já existe em algumas regiões do Brasil.
O
conceito chinês nasceu na cidade de Jinhua, onde o encontro de dois grandes
rios provoca constantes enchentes. A área alagada era cercada por um grande
muro, que tinha como função conter a água nos períodos chuvosos, mas que não
era eficiente.
"Em
2013, foi elaborado um projeto no conceito ‘cidades-esponja', repensando a
infraestrutura da cidade com relação à água. Os rios foram renaturalizados,
áreas foram transformadas em parques que a população poderia usufruir e foi
possível armazenar água nos períodos chuvosos", explica um relatório da
Fundação Grupo Boticário.
A
iniciativa foi bem-sucedida: a cidade ganhou uma nova identidade, a população
se reconectou com a natureza, evitou inundações e hoje 40 mil habitantes
utilizam o parque diariamente. O projeto faz parte de uma política nacional com
meta de ter 250 projetos de "cidades-esponja", segundo a Fundação.
Suely
Araújo, especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima, diz
que as "cidades-esponja" inovam em um contexto problemático: no
geral, a irrigação das cidades brasileiras é ruim. "A drenagem é o
elemento esquecido do planejamento urbano", explica a especialista, que
também é urbanista, advogada, e foi consultora legislativa da Câmara dos
Deputados por 29 anos, nas áreas de meio ambiente e urbanismo.
"O
conceito de cidades esponja evolui em relação ao sistema de tradicional, que
procura meios de escoar a água rapidamente para algum lugar em que ela possa
ser descartada, como bueiros", diz a urbanista.
Projetos
internacionais de "esponjas" contra enchentes são frequentemente
apontados como inspiração para reconstruir o Rio Grande do Sul. No início de
junho, o governador Eduardo Leite recebeu uma missão técnica com especialistas
holandeses do programa Dutch Risk Reduction, iniciativa holandesa para evitar
ou reduzir riscos decorrentes do aumento do volume da água em três rios do
país. "Devemos aproveitar a expertise de quem já trabalha com esses temas
com muita propriedade", disse Leite sobre o encontro, em suas redes
sociais.
Mas
o Brasil também tem expertise e autoridade em soluções domésticas inspiradoras.
A DW ouviu pesquisadores e listou exemplos nacionais que podem ser ampliados
para tornar as cidades brasileiras mais resilientes às enchentes.
• "Esponjas da natureza" no
Rio Grande do Sul
Historicamente,
os banhados sempre fizeram parte da paisagem típica do Rio Grande do Sul. São
áreas úmidas, planas e rasas, onde o rio nasce ou deságua "para
descansar", formando pequenos alagamentos que reúnem grande riqueza
vegetal e animal.
"Um
banhado é um espelho d'água, de 10 centímetros até 50 centímetros, podendo às
vezes chegar até um metro, mas ele expõe o seu leito. Às vezes ele seca, e
quando chove fica mais úmido e pode virar um pequeno laguinho", explica
Rualdo Menegat, geólogo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Embora
sejam reconhecidas como o ecossistema mais rico do planeta, os banhados estão
fortemente ameaçados e desaparecendo três vezes mais rápido do que as
florestas, de acordo com o Global Wetland Outlook, divulgado em 2018.
Naturalmente
e de graça, os banhados cumpriam a mesma função das
"cidades-esponja". "Banhado é a coisa mais importante e linda,
são oásis, berços da diversidade; absorve a água da chuva, freia a velocidade
com que a água da chuva vai embora", diz Menegat.
Segundo
o ecólogo Marcelo Dutra da Silva, da Universidade Federal do Rio Grande
(FURG), muitas cidades gaúchas já eram "cidades-esponja". Os
municípios da Costa Doce, que rodeiam a Lagoa dos Patos, no litoral gaúcho, são
repletos de banhados e campos úmidos, áreas que perderam a capacidade de
cumprir o papel esponja ao serem ocupadas por empreendimentos imobiliários.
Grande
parte dos banhados gaúchos desapareceu, explicam os acadêmicos. Quando tais
áreas são drenadas, perdem a vegetação e são cobertas por cimento ou se
transformam em plantações de soja ou monoculturas, por exemplo, elas tornam-se
impermeáveis.
O
geólogo explica que na costa do sul do estado, na região da cidade de Santa
Vitória do Palmar, a produção de arroz secou os banhados para usar a Lagoa
Mirim e da Lagoa Mangueira na irrigação, drenando suas áreas inundáveis, que
são solos extremamente férteis, e transformando os cursos d'água em uma malha
de canais de irrigação.
Para
além do efeito esponja que toda área de campos úmidos proporciona, os banhados
têm poder de sequestro de carbono 50 vezes maior que o de uma floresta, diz
Silva. "Ao ocupar e impermeabilizar estas áreas, queimamos dois serviços:
o do sequestro de carbono e da proteção pela absorção de grandes volumes de
água, em chuva aumentada".
Por
causa do valor ecológico, o governo do Uruguai designou os Bañados del Este, na
parte oeste da Lagoa Mirim, como uma região protegida e uma Reserva da Biosfera
(MAB); do lado brasileiro, a Estação Ecológica do Taim, com um vasto sistema
lagunar parcialmente formado pelas lagoas Mirim, Jacaré, Nicola e Mangueira,
faz parte da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica do Programa MAB, da Unesco.
Outro
exemplo é o caso do Rio Sinos, que banha diversas cidades do estado. Grande
parte dos municípios da Bacia Hidrográfica do Rio dos Sinos integra a região
metropolitana de Porto Alegre, e, como a maioria das regiões metropolitanas do
país, as áreas alagáveis foram sendo ocupadas pelas construções urbanas.
"Nesse
processo, as áreas alagáveis que acompanham o leito do rio e os banhados não
tiveram seus limites respeitados. Desta forma, enchentes e escassez de água são
eventos extremos recorrentes, colocando a vida e a economia da região em
permanente risco", diz relatório do Projeto Verde Sinos de Recomposição de
Mata Ciliar, elaborado pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).
Suely
Araújo, do Observatório do Clima, diz que, assim que a emergência de
assistência à população atingida pelas cheias for resolvida, o estado precisa
de um amplo programa de recuperação da vegetação nativa. "A forma de fazer
a agropecuária vai ter que mudar, se pautar pelo limite dos recursos naturais.
Não dá simplesmente para sair substituindo toda a vegetação nativa por
lavoura", afirma.
• Os "parques-esponja" de
Curitiba
Desde
a década de 1970, Curitiba investe em parques que possibilitam o armazenamento
da água da chuva – uma solução viável técnica, econômica e ambientalmente,
segundo relatório da Fundação Grupo Boticário.
O
maior exemplo é o Parque Barigui, o maior e um dos mais populares de Curitiba,
que ocupa 140 hectares do território de quatro bairros. Durante as fortes
chuvas que atingiram a capital paranaense em outubro do ano passado, por
exemplo, muitas fotos e vídeos circularam nas redes sociais mostrando o lago do
Parque Barigui alagado.
"As
fortes chuvas fizeram o Rio Barigui subir e mais uma vez o parque cumpriu sua
principal função, que é conter as águas e drená-las para que não cheguem até as
áreas residenciais", disse, na ocasião, a prefeitura de Curitiba. Além do
Barigui, os lagos dos parques São Lourenço, Bacacheri, Tingui e Atuba têm a
mesma função.
Um
estudo da Fundação Grupo Boticário aponta que a cada R$1 investido no Parque
Barigui são gerados R$12,50 de benefícios econômicos à população.
Outra
parte importante da estratégia, segundo a prefeitura, é drenar e desassorear o
lago do parque após as cheias, para retirar material e resíduos, além de areia,
levados pelo Rio Barigui até o lago do parque durante as chuvas.
• "Esponjas" desprotegidas:
as mudanças na lei
Uma
das estratégias mais importantes para reduzir os efeitos das enchentes é a
proteção das margens dos rios, que são consideradas Áreas de Preservação
Permanente (APP) de acordo com Código Florestal Brasileiro. A definição das
faixas mínimas a serem protegidas visa garantir que as funções gerais dessas
áreas sejam minimamente resguardadas, tanto no espaço rural quanto no urbano.
Mas
mudanças nas leis têm ido na contramão dos esforços de proteger as
"esponjas" naturais do Brasil. Há diversas iniciativas para
flexibilizar as legislações que protegem as regiões úmidas do país. Pelo menos
duas serão discutidas no Supremo Tribunal Federal (STF). Uma é sobre uma lei
estadual do Rio Grande do Sul que flexibilizou regras sobre a construção de
barragens em APPs.
A
outra questiona a lei federal 14.285/2021, que confere aos municípios e ao
Distrito Federal o poder de definir a metragem de áreas de preservação
permanente (APPs) em torno de cursos d'água em áreas urbanas. Movida pelo PT,
PSB, PSOL e Rede Sustentabilidade, a ação sustenta que a medida inverte toda a
lógica do regime constitucional de repartição de competências, pois as leis
ambientais estaduais e municipais somente podem aumentar o rigor ambiental das
normas nacionais, jamais reduzir.
Para
Suely Araújo, do Observatório do Clima, adaptar as cidades aos extremos
climáticos é tarefa urgente e que, para evitar que novos desastres como o do RS
se repitam, precisará envolver todas as políticas públicas.
Fonte:
Deutsche Welle
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