O plano de
Joe Biden para o Oriente Médio
A
extrema direita israelense colocou os EUA e seus parceiros europeus nas cordas.
O juiz parou e abriu contagem. Biden, Macron, Scholz e Sunak estão
desnorteados. Cada qual procura resolver a seu modo. Macron virou a chave e
tenta ser um novo Charles de Gaulle às avessas. Ignora com platitudes a
expulsão de suas tropas colonialistas no Niger e no restante da África
Ocidental e trata de forma histriônica Putin como o novo Hitler. Ao mesmo
tempo, procura se portar como o nacionalista que defende o fortalecimento
europeu na OTAN contra o mandonismo estadunidense. Posição esquizofrênica,
sinal dos tempos e da crise do Ocidente.
Sem
surpresas, sob todo o imbróglio da decadência neoliberal, a extrema direita
nazifascista venceu as eleições ao parlamento europeu. Olaf Scholz,
comparando-o a Angela Merkel, é um zero à esquerda. Tão zero à esquerda que
permitiu a ascensão da direita nazista alemã. Não merece mais uma linha.
Rishi
Sunak é carta fora do baralho. Representa a atual irrelevância da Inglaterra no
cenário político internacional. Provavelmente não é sua culpa. As únicas coisas
que a Inglaterra produziu nos últimos quarenta anos foram a Premier League e
Louis Hamilton. A primeira é questionável, uma vez que provocou a elitização do
futebol, inclusive no Brasil após a construção dos estádios para a Copa do
Mundo de 2014. A segunda é rechaçada pelos ingleses, já que Hamilton seria
negro e popular demais e pouco aristocrático, não reproduzindo o “jeito” inglês
de ser. Nesse caso, demonstra a mediocridade inglesa sob o memorialismo racista
do que foi o império britânico.
Joe
Biden, por sua vez, virou refém do sionismo. Gostaria de encerrar o genocídio
sem falar que é um genocídio, enterrando o assunto junto com os mortos
queimados por fósforo branco no meio de escombros e ruínas. Pela primeira vez,
sofreu uma manifestação em frente à Casa Branca. Nos países europeus e nas
universidades estadunidenses, como não há argumento plausível que equipararia a
causa palestina a terrorismo, os governos decidiram reprimir violentamente as
manifestações populares sem qualquer justificativa jurídica plausível.
O
dado político é que Joe Biden não pode interferir porque não consegue, não
possui mais mecanismo de dissuasão e de imposição a Israel. Mesmo com a decisão
do Tribunal Penal Internacional, resolução do Conselho de Segurança e a repulsa
política do Secretário-Geral da ONU, Benjamin Netanyahu continua o genocídio.
Politicamente, o primeiro-ministro não tem mais alternativas porque a dinâmica
política interna israelense é mais importante do que a geopolítica
internacional e os desejos dos EUA e de Joe Biden.
Pode-se
fazer a manifestação que for; no atual cenário, Israel continuará com o
genocídio e provavelmente expandirá a guerra para todo o Oriente Médio. Não há
mais margem de pressão internacional sobre Israel porque é Benjamin Netanyahu
quem domina Joe Biden. A questão é quem domina Benjamin Netanyahu.
O
aprofundamento das ações militares de Israel parece uma realidade cada vez mais
determinada pela ausência de alternativas políticas a Benjamin Netanyahu.
Sabendo disso, Joe Biden, de olho nas eleições presidenciais desse ano, propôs
um plano de cessar-fogo sem consultar Benjamin Netanyahu, Hamas e o aparato
diplomático de negociação instalado no Catar.
A
estratégia de Joe Biden tem o seu fundamento na realidade. Os EUA não possuem
mais margem razoável para negociação com a coalização de extrema-direita
israelense. O presidente estadunidense preferiu o anúncio público para
pressionar Israel. Com o ato desesperado, também confessa publicamente que não
controla mais o seu parceiro estratégico no Oriente Médio, o país que é uma
criação anglo-saxã da aliança do sionismo judaico com o sionismo cristão
submetida desde o início aos interesses geopolíticos do Ocidente na região que
é a maior produtora de petróleo do planeta.
O
plano de Joe Biden consiste em um cessar-fogo de seis semanas, com a retirada
das tropas israelenses, a troca de prisioneiros e o retorno dos 600 caminhões
de mantimentos ao dia. A segunda e a terceira etapas versam, respectivamente,
sobre a negociação para um fim definitivo da guerra e na reconstrução de Gaza.
A proposta foi bem recebida pelo Hamas, mas foi rejeitada por Israel no mesmo
dia.
O
irônico é que não foi rejeitado inicialmente por Benjamin Netanyahu, mas pelos
ministros da extrema direita. Itamar Ben-Gvir, ministro da Segurança
Interna, afirmou: “Este é um acordo promíscuo, que representa uma vitória para
o terrorismo e um perigo para a segurança do Estado de Israel. Concordar com
tal acordo não é uma vitória absoluta – mas uma derrota absoluta. Se o
primeiro-ministro implantar o acordo promíscuo nas condições publicadas hoje, o
que significa o fim da guerra e a renúncia do Hamas, Otzma Yehudit dissolverá o
governo”.
Já
Bezalel Smotrich, ministro das Finanças, defendeu: “Falei agora com o
primeiro-ministro e deixei-lhe claro que não farei parte de um governo que
concordará com o esboço proposto e acabará com a guerra sem destruir o Hamas e
devolver todos os raptados. Não concordaremos com o fim da guerra antes da
destruição do Hamas”.
Apenas
depois das manifestações dos ministros de extrema direita, Benjamin Netanyahu
se pronunciou: “O Hamas continua a fazer exigências extremas. A principal delas
é que retiremos todas as nossas tropas da Faixa de Gaza, ponhamos fim à guerra
e deixemos o Hamas em paz. O Estado de Israel não pode aceitar estes termos”.
Ocorre que retirar as tropas da Faixa de Gaza não foi proposta do Hamas, mas
dos EUA.
Benjamin
Netanyahu não é um refém, mas fragilizado politicamente, a direita mais à
direita consegue pautar a guerra. E a questão da guerra para essa
extrema-direita é o retorno dos colonos israelenses à Gaza. Portanto, uma
Solução Final, com o genocídio e a expulsão dos palestinos do território,
fomentando uma nova Nakba.
Como
resposta, a extrema-direita israelense trucou seis exigindo a abertura de um
novo flanco ao norte contra o Hezbollah. Em sua crítica a Benjamin Netanyahu, o
líder da oposição Yair Lapid argumentou que o “o governo não tem nenhum plano
para o dia seguinte em Gaza, nenhum plano para devolver os residentes ao norte,
nenhuma gestão, nenhuma estratégia. Um governo de abandono total”. Para a
extrema-direita, o dia seguinte é o assentamento israelense. Provavelmente
também para Yair Lapid, uma vez que a oposição não possui nenhuma discordância
sobre a pertinência da guerra e o genocídio.
Mas
Joe Biden não ficou parado. A sua reeleição depende de um cessar-fogo até o fim
do ano, ou pelo menos uma tentativa para responsabilizar alguma das partes pelo
previsível fracasso. A última carta de Joe Biden foi a aprovação no Conselho de
Segurança de uma nova resolução, aprovada no dia 10 de junho. Hamas elogiou a
resolução por meio de comunicado divulgado pela Reuters: “O Hamas saúda o que
está incluído na resolução do Conselho de Segurança que afirmou o cessar-fogo
permanente em Gaza, a retirada completa, a troca de prisioneiros, a
reconstrução, o regresso dos deslocados às suas áreas de residência, a rejeição
de qualquer mudança ou redução demográfica na área da Faixa de Gaza e a entrega
da ajuda necessária ao nosso povo na Faixa”. Segundo os EUA, Israel teria
aceitado, mesmo com os antecedentes dos dias anteriores de repulsa à proposta
de cessar-fogo.
A
hipótese mais plausível é a de que resolução não será praticada, ou se for,
será desobedecida por alguma justificativa estapafúrdia de Israel. A resolução
tem um pecado para a extrema direita. Defende a existência de dois Estados, a
permanência da Gaza e a sua unificação com a Cisjordânia, mesmo que seja sob a
“Autoridade Palestina”. A resolução “rejeita qualquer tentativa de mudança
demográfica ou territorial na Faixa de Gaza, incluindo quaisquer ações que
reduzam o território de Gaza”.
Dificilmente
a extrema direita aceitará tal acordo. Pode disfarçar até o possível, mas
acatá-la é algo inimaginável. A rebaixada resolução conflita com o projeto de
poder da extrema-direita israelense, que agora direciona o seu arsenal
estadunidense contra o Hezbollah para “devolver os residentes ao norte”, como
bem lembrou o “moderado” Yair Lapid (sic!).
Há
um problema interno em Israel: os colonos que saíram do norte para cidades mais
ao sul e à capital, algo em torno de 53.000, segundo a FDI – provavelmente o
número é maior. Na visão da extrema-direita, como construir uma Grande Israel
se as cidades do norte, sobretudo as mais próximas ao Líbano, estão vazias? Na
prática, a guerra trouxe uma diminuição real da Grande Israel, pois fronteiras
inabitadas significam um território menor vivido por israelenses “puros”
(judeus ashkenazi).
Além
disso, 53.000 colonos que foram para o norte em terras ocupadas, com fronteiras
invadidas após 1967, são colonos cujo perfil é predominantemente nacionalista e
supremacista, com vínculos com a mesma extrema-direita que detém politicamente
a coalização de Netanyahu. Logo, é um problema político real.
Diante
desse cenário, Itamar Bem Gvir anunciou a guerra: “Todas as fortalezas do
Hezbollah devem ser queimadas e destruídas. Guerra!”.
Obviamente,
uma guerra contra o Hezbollah é completamente diferente de uma guerra contra o
Hamas. Se com os Houthis o fracasso das ações militares estadunidenses e
inglesas no mar é visível e confessada, com pedidos de intervenção para a
China, uma guerra fronteiriça tendencialmente traz desafios muito maiores.
O
Hezbollah, que expulsou Israel do sul do Líbano após uma invasão que durou 20
anos, e por isso é uma força insurgente nacionalista no contexto libanês, não é
mais o mesmo. Trocou os antigos e imprecisos Katyusha por misseis iranianos,
montou uma organização militar de intervenção treinada em conflito real – com
Israel, inclusive após a expulsão do Líbano – e capilarizou-se politicamente,
socialmente e culturalmente na sociedade libanesa.
Benny
Gantz, líder da centro-direita, abandonou o gabinete de guerra um dia antes da
resolução do Conselho de Segurança da ONU, expondo o problema ao mesmo
tempo em que o aprofunda, na medida em que a extrema-direita passa a ter uma
composição mais orgânica e sem disputas internas no gabinete e na coalizão.
Saiu pedindo a Benjamin Netanyahu que “não deixe que nossa nação se desfaça”. O
pedido veio reforçado por uma confissão: “eu apoio o plano que decidimos no
gabinete de guerra, apresentado pelo presidente Joe Biden, e exijo do
primeiro-ministro a coragem necessária para apoiá-lo e promovê-lo”. Ou seja, o
gabinete de guerra foi desautorizado por Benjamin Netanyahu a mando dos
ministros da extrema direita. Como resposta, sua saída foi ensaiada com Joe
Biden para pressionar os ministros de extrema direita.
Com
a coalizão de Benjamin Netanyahu, há outra alternativa para Israel do ponto de
vista interno que não seja a guerra? Provavelmente, não. Benjamin Netanyahu não
está mais pensando na segurança estratégica de Israel e nos reféns, mas na
manutenção a qualquer custo de seu governo. Ou se está, está em segundo plano.
E não há como obter sucesso nessa empreitada sem a extrema direita israelense.
Israel
está em um impasse político interno que nunca esteve, nem mesmo em períodos com
diferenças mais visíveis. Se a extrema direita sair, Benjamin Netanyahu cai e
Israel entra em crise porque a extrema direita é uma força eleitoralmente e
politicamente poderosa. Possivelmente, ela retornaria ou continuaria a pautar a
política nacional.
Como
disse, Benjamin Netanyahu não deve ser visto como vítima. Pelo contrário, a
extrema direita é produto do caráter colonialista do Estado de Israel, pois não
há alternativa para que Israel exista se não for por meio da colonização, apartheid e
genocídio. São aspectos que precisam ser defendidos e naturalizados sob um mito
de superioridade racial. Ninguém aprofundou tal caráter mais que Benjamin
Netanyahu, o primeiro-ministro com mais tempo no cargo. Contudo, as disputas
internas israelenses permitiram a extrema direita abertamente fascista (ou mais
fascista que Benjamin Netanyahu, se isso for possível), pautar a guerra, a
política interna e, para o constrangimento norte-americano e europeu, a
política externa, colocando os parceiros estratégicos de Israel na berlinda.
A
extrema direita supremacista se tornou uma força institucionalmente
contraproducente a Israel porque jogou fora todos os disfarces da “Democracia”
sem Constituição do Oriente Médio. Explicitou a apartheid por
meio de um genocídio fotografado, filmado e postado em tempo real nas redes
sociais. Pior, por meio da aliança do sionismo judaico com o sionismo cristão,
consegue pautar e impor decisões unilaterais aos Estados Unidos, sobretudo em
um ano eleitoral.
Pressão
internacional e de organismos multilaterais não tem qualquer relevância para o
país que sempre foi recordista mundial em desobedecer a resoluções e normas
internacionais. A sua aliança histórica e ontológica com a OTAN e os EUA dá
carta branca e salvo conduto para fazer o que bem entender. Os países europeus
e EUA não podem realizar uma crítica profunda a Israel, pois a colonização,
o apartheid e o genocídio são construções do liberalismo, do
capitalismo e do Ocidente.
Fazer
uma crítica radical a Israel, como a África do Sul faz, hoje comandada
politicamente (não economicamente) pelo CNA e por negros (maioria zulu), seria
uma negação da autorrepresentação idílica dos europeus e dos norte-americanos
brancos. Jamais acontecerá. Pelo contrário, a julgar pelas eleições ao
parlamento europeu, o movimento será de orgulho estandardizado e naturalização
do imperialismo baseado no supremacismo racial.
Se
a coalizão de Benjamin Netanyahu continuar, Israel provavelmente será levado a
uma guerra de grandes proporções, com final imprevisível, especialmente com o
recrudescimento da ação da OTAN na guerra entre Rússia e Ucrânia. E uma guerra
de grandes proporções poderá levar Israel a uma posição militarmente
desfavorável, como ficou evidente com a ação do Irã e a dificuldade de agir por
terra contra a resistência do Hamas. Obrigaria os EUA a enviar muito mais
armamentos e recursos em um ano eleitoral. Se até agora, com o Hamas, foram
dezenas de bilhões de dólares, quanto seria com o Hezbollah? Abrir uma frente
contra o Hezbollah fecharia a frente contra o Hamas? É extremamente possível
que essas questões para a extrema direita tenham pouca relevância diante dos
refugiados internos e da promessa mítica da Grande Israel para os colonos.
A
dinâmica interna de Israel está levando-o a um dilema existencial, no qual
Israel expõe limites, apesar do mito do grande exército de Israel, mito esse
que conversa, obviamente, com o mito religioso do grande exército de Davi. Como
lembra Marx, “tudo que é sólido se desmancha no ar”. Inclusive Davi, que
praticou adultério com Bate-Seba e enviou o marido, Urias, a uma guerra na
frente de batalha para ser morto. Diante dos graves pecados do adultério e do
homicídio, Deus, sábio e todo poderoso, matou o filho recém-nascido de
Bate-Seba com Davi (infanticídio) e profetizou por meio do profeta Natã:
“Tomarei as suas mulheres a sua própria vista e as darei a outro homem, que se
deitará com elas em plena luz do dia” (Samuel 12:11). O outro homem
foi Absalão, filho de Davi. Nunca a história da Israel atual esteve tão próxima
ao mito de Davi.
Fonte:
Por Leonardo Sacramento, em A Terra é Redonda
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