segunda-feira, 17 de junho de 2024

Infância de neandertais parece ter sido bem mais difícil do que a de humanos modernos

Os primeiros anos de infância dos neandertais parecem ter sido significativamente mais difíceis que os dos seres humanos de anatomia moderna (Homo sapiens), o que pode explicar, em parte, porque a nossa espécie sobreviveu ao fim da Era do Gelo, enquanto nossos primos arcaicos desapareceram.

A conclusão vem de um novo estudo que comparou o desenvolvimento dos dentes de membros de ambas as espécies, um processo que pode funcionar como uma espécie de registro de problemas alimentares, infecções e outras dificuldades enfrentadas pelo organismo.

No trabalho, pesquisadores liderados por Sireen El Zaatari, da Universidade de Tübingen (Alemanha), fizeram uma análise detalhada de problemas dentários conhecidos como hipoplasias do esmalte. As hipoplasias correspondem a trechos do esmalte (a camada mais externa do dente) cuja espessura fica reduzida quando há algum problema de crescimento durante a formação do dente.

Entre os percalços que podem levar às hipoplasias do esmalte estão doenças, desnutrição ou ferimentos sérios durante a infância. Como, depois dessa formação inicial do esmalte, ele não volta a crescer mais tarde, tais problemas podem funcionar como uma biblioteca dos estresses sofridos pelo organismo nos diversos períodos da vida infantil (já que a formação de cada dente acontece de acordo com uma sequência mais ou menos estabelecida ao longo das diferentes idades).

O padrão dentário criado pelas hipoplasias já foi usado várias vezes antes para estudar populações da Idade da Pedra, inclusive comparando seres humanos anatomicamente modernos e neandertais. Mas os resultados obtidos até hoje eram contraditórios, em parte por causa do uso de metodologias muito diferentes, afirmam El Zaatari e seus colegas em artigo publicado no último dia 23 no periódico especializado Scientific Reports.

Para tentar contornar esse problema, a equipe liderada pela pesquisadora decidiu incluir todos os tipos possíveis de hipoplasia em sua análise, bem como todos os tipos de dentes (incisivos, caninos, molares etc.), formados em diferentes fases do desenvolvimento.

Na amostragem, eles incluíram 867 dentes de 176 indivíduos, com um número semelhante de defeitos dentários em humanos modernos e neandertais. Os dentes foram encontrados em sítios arqueológicos que abrangem tanto a Europa Ocidental (Espanha, França) quanto o Oriente Médio e países do Leste Europeu. Além das hipoplasias em cada dente visto isoladamente, eles também tentaram mapear o padrão de defeitos dentários na dentição de uma mesma pessoa ao longo do desenvolvimento dela.

Feitas as contas da análise, os pesquisadores chegaram a duas conclusões importantes. Primeiro, quando todos os casos de hipoplasia são considerados em conjunto, a incidência "bruta" do problema em ambas as espécies é mais ou menos a mesma, o que, à primeira vista, sugeriria níveis similares de estresse sobre o organismo de humanos modernos e neandertais durante a formação dentária.

Mas, analisando os dados com mais detalhes, a equipe notou uma diferença intrigante. Os problemas na formação do esmalte de crianças Homo sapiens se concentravam na fase do desmame, período reconhecidamente difícil para a nutrição dos pequenos em populações que não têm acesso a facilidades como papinhas industrializadas ou leite obtido de animais domésticos. Depois desses problemas iniciais, porém, a incidência de hipoplasias caía bastante.

No caso dos neandertais, porém, os sinais de estresse também estavam associados ao desmame, mas continuavam ao longo de anos depois da conclusão desse processo, sugerindo que a infância dos Homo neanderthalensis podia ser consideravelmente mais difícil do que a dos membros da nossa espécie.

Isso, é claro, se as conclusões estiverem corretas. O debate sobre o suposto "calcanhar-de-aquiles" dos neandertais, responsável por seu desaparecimento após a chegada dos H. sapiens à Europa e à Ásia, estende-se há décadas, e existem cada vez menos razões para achar que havia um grande abismo entre as duas espécies. Para começo de conversa, já está claro que houve vários episódios de miscigenação entre as espécies, legando genes neandertais à maior parte das pessoas vivas hoje.

Ligeiras diferenças na capacidade de nutrir as crianças e permitir que elas se tornassem adultos saudáveis e com boa capacidade reprodutiva talvez pudessem ser um motivo sutil o suficiente, e ainda assim impactante o suficiente, para explicar o êxito relativamente maior dos humanos de anatomia moderna, mas o debate ainda deve prosseguir por bastante tempo.

•           Melhor forma de entender a evolução do homem é abraçar sua esquisitice, diz pesquisador

Os colegas de profissão do paleoantropólogo Bernard Wood têm uma mania que costuma deixá-lo injuriado.

"Sabe, todo mundo quer achar o primeiro hominínio [o mais antigo membro do grupo que inclui os seres humanos e não abrange os chimpanzés]. Às vezes dá vontade de bater as cabeças deles umas nas outras e gritar: não é nada disso, vocês estão tentando enfiar fósseis à força numa classificação que só leva em conta as espécies modernas", brinca o pesquisador britânico, que se formou em medicina em 1970 e chegou a atuar como cirurgião antes de se tornar um dos principais estudiosos da evolução humana no mundo.

Wood esteve no Brasil neste mês a convite do Instituto de Estudos Avançados e do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP. Fez duas conferências em São Paulo e saiu a campo na região de Lagoa Santa (MG), em cujas cavernas foram encontrados os mais antigos esqueletos humanos do Brasil (com até 12 mil anos de idade). "Tudo o que ele publicou acabou se tornando clássico", resume o bioantropólogo Walter Neves, professor sênior da universidade paulista e um dos responsáveis por organizar a vinda de Wood ao país.

O britânico, que hoje é docente da Universidade George Washington (EUA), tem trabalhado em três grandes frentes. A primeira é o estudo dos mais antigos hominínios, aqueles que podem ter vivido há cerca de 7 milhões de anos, no momento em que a nossa linhagem parece ter se separado da que daria origem aos chimpanzés e bonobos.

A segunda é o surgimento do gênero Homo (ao qual nós, Homo sapiens, pertencemos, e que tem pelos menos 2,5 milhões de anos de idade). Por fim, Wood também costuma analisar a evolução dos hominínios do gênero Paranthropus. Esses parentes extintos da humanidade poderiam ser descritos, grosso modo, como uma versão bípede e nanica dos gorilas, graças à sua dentição e crânio peculiares, adaptados ao consumo de matéria vegetal em larga escala.

"Eu perco o interesse assim que os hominínios começam a ficar parecidos com os seres humanos modernos", explicou Wood durante sua palestra na sede da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Além desse pré-requisito, o trabalho do paleoantropólogo tem outra linha mestra: retratar o passado remoto dos hominínios com a devida complexidade, e não como um simples prólogo para o aparecimento da nossa espécie.

"Os fósseis que nós encontrarmos perto da divergência entre hominínios e ancestrais dos chimpanzés vão ser mesmo confusos, é algo natural [pela semelhança entre as linhagens naquela época]. Mas o problema vai além disso. Alguns dos meus colegas imaginam que todos os fósseis com 6 milhões ou 7 milhões de anos ou vão ter alguma ligação com os hominínios ou com os ancestrais dos chimpanzés. Mas não há absolutamente nenhuma razão para acreditar que não poderia haver ali uma linhagem extinta que não correspondia a nenhum dos dois", explica ele.

Um possível exemplo é a espécie que, para alguns especialistas, seria o recordista de idade entre os hominínios: o primata conhecido como Sahelanthropus tchadensis. "Eu tenho sido um menino levado quando falo do Sahelanthropus", ironiza Wood. "Mas o fato é que talvez a espécie seja muito mais interessante se não a encaixarmos na nossa linhagem."

Por outro lado, o estudo dessa fase antiquíssima da evolução da linhagem humana tem sido atrapalhado pela instabilidade política e social nas regiões da África que abrigam as rochas da idade "certa" para encontrar esses fósseis. Entre as áreas estratégicas, segundo ele, estão o Chade, o Sudão do Sul e Camarões. Apenas a descoberta de mais fósseis será capaz de revelar qual era a verdadeira diversidade de grandes símios daquela época.

Seja como for, diz Wood, a melhor maneira de entender a trajetória evolutiva dos hominínios é abraçar sua esquisitice e tirar da cabeça a ideia de que ela é uma sequência simples e linear. "A nossa situação atual é, na verdade, muito estranha, porque é a primeira vez em vários milhões de anos em que existe uma só espécie de hominínio", lembra ele. "A regra é que muitas espécies convivessem dentro e fora da África."

O estudo do gênero Paranthropus é um excelente exemplo dessa lógica. "Ao que parece, eles se alimentavam de grama e caniços, que crescem na beira de corpos d'água. É algo que lembra parte da dieta de alguns babuínos hoje. Grama não é um negócio muito emocionante para nós, seres humanos, mas acontece que as folhas jovens podem ser bem nutritivas", explica.

"Como eles muito provavelmente não são nossos ancestrais, a nossa tendência é tachá-los de fracassados ou becos sem saída evolutivos, mas o fato é que eles sobreviveram durante 2 milhões de anos, o que é um sucesso evolutivo considerável [o H. sapiens, por enquanto, só existe há 300 mil anos]."

Antigamente, acreditava-se que, na bacia de Turkana, região da África Oriental rica em fósseis de hominínios, os primeiros membros do gênero Homo se movimentavam com mais facilidade e se aproveitavam de uma grande variedade de recursos, por serem onívoros, enquanto o Paranthropus era uma espécie que dependia de ambientes menos favoráveis.

Mas um dos alunos de pós-graduação de Wood está trabalhando com uma hipótese totalmente diferente: o Paranthropus é que teria ocupado a bacia de Turkana primeiro, ficando com os habitats mais favoráveis, enquanto os primeiros representantes do nosso gênero teriam sido forçados a "comer pelas beiradas", diz o pesquisador.

E, quanto aos mais antigos Homo, Wood também é cético diante de tentativas de explicar a origem do gênero com base num único fator, como o aumento do consumo de carne ou a fabricação de ferramentas de pedra. "Toda vez que alguém propõe uma solução simples para um problema biológico complexo, essa solução quase certamente está errada", diz ele. "É muito mais provável que um conjunto de fatores esteja por trás do surgimento do gênero Homo."

 

Fonte: FolhaPress

 

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