Esquecida
no Ocidente, pesquisa soviética pode ser saída para problema de resistência
antibiótica
Há
previsão de que a resistência bacteriana aos antibióticos vai matar 10 milhões
de pessoas por ano até 2050, gerando um impacto econômico de 66 trilhões de
euros (cerca de R$ 447 trilhões). No entanto, uma antiga linha de pesquisa
soviética pode ser a chave para evitar essa catástrofe: a fagoterapia.
Ao
trabalhar em uma vacina para disenteria causada pela bactéria Shigella, o
médico francês Felix d'Hérelle notou que suas culturas apresentavam zonas de
lise, espaços claros onde a bactéria havia morrido.
Anos
mais tarde, em 1919, após processos de isolar e testar em si mesmo a segurança
do micróbio responsável pelas mortes bacterianas, d'Hérelle realizou o primeiro
tratamento a base de bacteriófagos, vírus comedores de bactérias, na história
mundial.
Publicada
alguns anos mais tarde, a descoberta abalou o cenário médico ao redor do mundo,
que logo notou o potencial terapêutico da fagoterapia.
Pioneiro
do tema, a partir de 1925 o francês chegou a ser indicado ao Prêmio Nobel de
Medicina oito vezes, mas foi preterido por sua formação autodidata e pelo
regimento interno do Instituto Pasteur, onde realizava suas pesquisas.
Os
fagos, como organismos que parasitam bactérias, podem ser encontrados em
qualquer ambiente em que haja micro-organismos disponíveis para fagocitar,
desde dentro do nosso corpo até na natureza e em ambientes urbanos, como solos,
rios e esgotos.
A
fagoterapia não precisa ser usada necessariamente em seres humanos. Seus
princípios podem ser aplicados na agropecuária para o controle e a prevenção de
doenças em plantas e animais, além de poder ainda ser usada para impedir o
processo de decomposição e estender a vida útil dos alimentos.
• Desenvolvimento soviético
Paralelamente
a d'Hérelle, outros médicos ao redor do mundo notaram os vírus bacteriófagos e
iniciaram suas pesquisas. Em 1923, o georgiano George Eliava visitou o
Instituto Pasteur, onde fez uma grande amizade com o francês e ficou encantado
com a fagoterapia.
A
partir disso, no mesmo ano, Eliava fundou o Instituto de Bacteriologia em
Tbilisi, capital da Geórgia — na época, parte da União Soviética. Atualmente
conhecida como Instituto George Eliava, a instituição é a maior referência em
pesquisa e tratamento com fagos em todo o mundo.
Pouco
após a fundação, o instituto logo foi eleito um dos pilares centrais na
estratégia epidemiológica do país, recebendo financiamento e, em certo momento,
amostras e toda doença bacteriana identificada nos hospitais soviéticos.
Com
isso, o Instituto George Eliava aumentou sua coleção de fagos terapêuticos,
produzindo em larga escala. O uso era tão comum na União Soviética que os
medicamentos eram até mesmo enviados para as tropas no front da Segunda Guerra
Mundial, que os usavam para prevenir e se tratar de infecções.
• Fagoterapia hoje
Enquanto
isso, no Ocidente, uma nova classe de medicamentos roubava a cena: os
antibióticos. Com o passar do tempo, substituíram os bacteriófagos como método
de tratamento de infecções, e a fagoterapia foi esquecida deste lado do mundo.
De
fato, aponta Aline Maria da Silva, professora do Instituto de Química da
Universidade de São Paulo (USP) e vice-diretora do Centro de Pesquisa em
Biologia de Bactérias e Bacteriófagos (CEPID B3), no início era mais fácil e
lucrativo apostar nos antibióticos por serem um tratamento mais genérico, capaz
de afetar uma gama maior de bactérias, enquanto os vírus bacteriófagos
funcionam apenas em uma bactéria.
Se
alguém quisesse se tratar com bacteriófagos, teria que se dirigir até o Phage
Therapy Center, do Instituto Eliava, em Tbilisi, em uma espécie de turismo
médico.
Até
agora.
A
terapia encontrou uma ressurgência devido ao "surgimento das bactérias
multirresistentes a antibióticos", diz a pesquisadora.
A
resistência bacteriana é o fenômeno pelo qual o uso de antibióticos seleciona
progressivamente bactérias resistentes a seus compostos, fazendo com que, com o
passar do tempo, se torne cada vez mais difícil tratar determinada doença.
"A
busca por novos antibióticos não tem sido muito bem-sucedida nas indústrias
farmacêuticas nem nos laboratórios de pesquisa."
Hoje,
o mundo médico ocidental vê na fagoterapia uma "saída bastante
viável" para o problema da resistência antibiótica, diz Silva.
Durante
anos, o tratamento com bacteriófagos foi visto como algo místico,
pseudocientífico, realizado pelos russos. Foi só depois da dissolução da União
Soviética e da perda do grande financiamento estatal pelo instituto que o mundo
ocidental lembrou do potencial médico dos fagos.
Mas,
por enquanto, as pesquisas ocidentais ainda são muito "incipientes",
diz a pesquisadora.
Faltam
estudos médicos consolidados sobre a fagoterapia que sigam os mais altos
padrões científicos, com características de duplo-cego, randomizado e
multicêntrico, aponta. "Essa é uma crítica. Porém, os casos individuais
são muito bem-sucedidos."
Por
outro lado, há muitos estudos soviéticos, russos e georgianos, diz a
especialista.
"A
grande maioria é publicada nas revistas russas e estão em russo. Isso era uma
limitação, mas está sendo resolvida."
O
mundo inteiro está trocando informação, e agora é "só uma questão de
tempo" até que os estudos já realizados na Rússia e na Geórgia cheguem no
mundo ocidental, destacou Silva.
• Fagos e antibióticos
Atualmente,
as pesquisas médicas giram em torno de tratamentos que aliam o uso de
antibióticos com bacteriófagos. "De alguma maneira, que ainda está em
estudo, os fagos deixam as bactérias mais sensíveis aos antibióticos",
resume Silva.
Além
disso, as pesquisas se dão ao redor de tratamentos fagoterápicos personalizados
ao paciente, isto é, descobre-se a bactéria causadora da doença e se desenvolve
um bacteriófago capaz de matá-la.
Segundo
Silva, isso difere de como as coisas funcionam no Eliava. "Na Geórgia, no
Eliava, você pode comprar um fago na farmácia, ou um coquetel."
Esses
tratamentos, assim como os antibióticos, podem ainda ser aplicados de
diferentes maneiras dependendo da infecção a ser tratada, como pomadas,
aerossóis, injeções e até por via cirúrgica em casos de infecção óssea.
Uso
de fago aliado a antibióticos desponta no Ocidente
Publicado
no início do mês, um estudo retrospectivo belga analisou 100 casos de
tratamentos que aliam as duas formas de combate a infecções, mostrando melhora
clínica em 77% dos casos e a eliminação da bactéria do sistema em 60%.
"O
antibiótico sozinho não resolveu o problema, mas o antibiótico junto com o fago
resolveu."
Para
Silva, a Bélgica, dentre os países ocidentais, é o mais avançado na
fagoterapia, graças à "rapidez" com que conseguiu regulamentar as
pesquisas em seu cenário regulatório — cerca de dez anos.
No
resto da Europa e nos Estados Unidos, os pacientes que obtêm acesso à
fagoterapia recebem dentro do chamado "uso compassivo", isto é,
"quando não há outra forma de tratamento".
• E no Brasil?
No
passado, o Brasil foi um grande pioneiro na fagoterapia, com grandes médicos
pesquisadores do Instituto Oswaldo Cruz (Fiocruz). Dentre eles, o pioneiro
doutor José da Costa Cruz, chegando a ser citado pelo Eliava como um grande
expoente da área.
Em
1921, Cruz fez seus primeiros testes epidemiológicos com fagos na Serra da
Mantiqueira — localizada entre os estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São
Paulo —, mas sua pesquisa retornou com resultados negativos.
Na
época, Cruz ainda desconhecia as observações de d'Hérelle, fazendo com que o
brasileiro se tornasse o primeiro pesquisador com um resultado bem-sucedido com
a fagoterapia. Mesmo assim, não desistiu e obteve bons resultados em novos
testes em 1923, no Rio de Janeiro.
Com
isso, certo de sua pesquisa, iniciou maiores esforços, e a Fiocruz começou a
distribuir amostras de fagos por todo o Brasil, trazendo mais pesquisadores
para a área, como o doutor Nelson Barbosa e o doutor Oscar Pereira.
Com
a Revolução Paulista de 1924, o instituto brasileiro viu a oportunidade de
realizar o maior teste de bacteriófagos até então, produzindo frascos de
medicamentos contra disenteria que foram dados aos soldados governistas. Foi o
primeiro teste em massa já feito, antes mesmo dos soviéticos e dos feitos por
d'Hérelle na Índia.
No
entanto, assim como ocorreu em muitos outros países, assim que os antibióticos
surgiram, as pesquisas de fagoterapia no Brasil foram interrompidas, lamenta
Silva. Agora, as pesquisas voltaram a acontecer no Brasil, mas ainda então em
estágio inicial.
O
lado mais avançado é justamente o agropecuário, até "por questões
regulatórias", já que as exigências para atuar no setor são menores do que
as de saúde humana, descreve a pesquisadora.
No
entanto, Silva destaca a boa vontade dos pesquisadores do Eliava em
compartilhar seus conhecimentos e se diz aberta a recebê-los na USP. "Eles
são bem abertos. A gente pode visitar o Eliava, eles oferecem cursos e
treinamentos."
"Um
dos maiores congressos de vírus de micro-organismos foi realizado no ano
passado na Geórgia, e vários pesquisadores foram. Infelizmente nós não pudemos
ir por questões logísticas."
Fonte:
Sputnik Brasil
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