"Brasília
não acolhe os povos indígenas", afirma Ailton Krenak
Ailton
Alves Lacerda Krenak nasceu em 1953, no Vale do Rio Doce, em Minas Gerais,
quando o povo Krenak vivia no exílio, expulso de seu território tradicional por
invasores que ocuparam e depredaram as matas densas às margens do Watu, como o
povo originário chama seu avô-rio. Ailton viveu parte de sua vida em São Paulo,
onde estudou e começou a militância no movimento que começava a surgir no final
dos anos 1970, reunindo indígenas de muitas etnias em torno de uma luta comum
por direitos. Sua imagem pintando o rosto de preto no Congresso Nacional
tornou-se símbolo da resistência indígena na Constituinte. Suas ideias estão
registradas em livros que nos aproximam dos povos originários e confrontam
nossa vida cotidiana, alertando para os efeitos da desconexão entre o homem e a
natureza. É autor de Ideias para adiar o fim do mundo (2019), A vida não é útil
(2020) e Futuro ancestral (2022).
O
escritor e membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) passou três dias em
Brasília, na semana passada, com uma agenda especial. Em entrevista exclusiva
ao Correio, critica a falta de acolhimento na capital do país aos indígenas.
"Brasília não acolhe. Seria muito interessante que os povos indígenas
tivessem espaços mais acolhedores do que fazer passeata na Praça dos Três
Poderes e reclamar contra o Marco Temporal. Nos últimos 15-20 anos, os
indígenas ocupam Brasília para denunciar abusos e reclamar a demarcação dos
seus territórios."
Krenak
é doutor honoris causa pela Universidade de Brasília (UnB) e pela Universidade
Federal de Juiz de Fora. Em 2023, foi eleito como membro da Academia Brasileira
de Letras. A vinda a Brasília fez parte da programação de abertura da exposição
"Hiromi Nagakura até a Amazônia com Ailton Krenak", idealizada pelo
Instituto Tomie Ohtake, de São Paulo. Com curadoria dele, a mostra no Centro
Cultural Banco do Brasil (CCBB) apresenta 120 fotografias inéditas no Brasil do
premiado fotógrafo japonês Hiromi Nagakura. As imagens foram registradas em
viagens com Krenak, principalmente pelo território amazônico, entre 1993 e
1998. A exposição, com entrada gratuita, vai até 18 de agosto.
O
ambientalista regressou nos anos 2000 a seu território, que ajudou a consolidar
em 1999. Hoje vive às margens do Watu, ferido pela lama do rompimento da
barragem de dejetos da Samarco em 2015. "A cultura colonial brasileira é
tão arraigada e a superestrutura de governar o país é toda montada para
promover isso que se chama progresso: abrir estradas, construir hidroelétricas.
Se você olhar a América Latina, nenhum país criou integração entre esses povos.
A disputa pelo território está na base desse conflito", aponta o escritor.
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Confira a íntegra da entrevista do imortal.
• O senhor tem sido muito solicitado a
vir a Brasília para eventos. Como é a sua relação com a capital federal? O que
significa estar aqui e o que ela representa para os povos indígenas?
Quando
ainda não existia Brasília, nossos povos desciam de navio, de barco, vinham de
lá do Norte, do Tapajós, também de canoa, de jangada, para a capital do Brasil
que era o Rio de Janeiro. A gente escuta os velhos falando que alguém fez uma
viagem para ir conversar com Dom Pedro II. Dom Pedro II recebia os indígenas na
corte. Depois, o governo republicano recebia também. Até o tempo de Getúlio
Vargas, os indígenas desciam ao Rio de Janeiro. Depois, quando a capital veio
para o centro do país, os povos indígenas tiveram que bater estrada para chegar
aqui. E Brasília foi erguida dentro do território Xavante e Karajá. Brasília é
uma terra antiga do povo indígena Xavante, Craô, Karajá e acho que Apinajé
também. Todos esses povos daqui do Cerrado passavam aqui. Então, ela não é
nova, tem um nome novo, mas é um lugar muito antigo. E já abrigou muitos povos,
Brasília é isso.
• A construção da nova capital expulsou
os índios?
Brasília
virou essa capital moderna, impessoal. As pessoas que chegam aqui não têm onde
ficar, elas têm que correr para ir na Funai (Fundação Nacional dos Povos
Indígenas), no Ministério, no STF (Supremo Tribunal Federal), sair e ir embora,
porque aqui não é um lugar acolhedor. Brasília não acolhe. É uma cidade que foi
feita para funcionar como sede da burocracia política no Brasil. Seria muito
interessante que os povos indígenas tivessem aqui espaços mais acolhedores do
que fazer passeata na Praça dos Três Poderes e reclamar contra o Marco
Temporal. Nos últimos 15-20 anos, os indígenas ocupam Brasília para denunciar
abusos e reclamar a demarcação dos seus territórios. O que significa que essa
capital é o centro dos conflitos de interesse político e social no Brasil.
• E o que acha do Memorial dos Povos
Indígenas aqui em Brasília?
Eu
gosto muito do desenho que o Niemeyer fez. Mas aquele edifício, prédio, não
serve para guardar um acervo de arte, não acolhe também as pessoas, não tem um
auditório como esse aqui do CCBB. A rampa do Memorial torna impossível você
manter uma exposição lá dentro.
• A criação do Ministério dos Povos
Indígenas pelo governo Lula está conseguindo ter uma atuação efetiva na sua
avaliação?
Claro
que faz diferença. Só o fato de, em uma entrevista, você me perguntar isso já
incluiu o tema. Importante, em meio ao elenco das instituições brasileiras
racistas, termos um Ministério dos Povos Indígenas, onde obrigatoriamente terá
que ter indígenas lá dentro. Mesmo que este ministério ainda não tenha tido
tempo nem condições para fazer tudo para o que ele veio como promessa, a gente
deve considerar que é importante a conquista para os povos indígenas.
• Chegou a ser convidado ou consultado
para participar diretamente neste ministério?
Eu
não fui consultado sobre nada, não teria que ser consultado, porque não tenho
interesse por política partidária, e isso é no campo da política partidária. O
que eu faço é o movimento indígena, não é política partidária.
• Como se sente sendo o primeiro
indígena a entrar na Academia Brasileira de Letras?
Chegar
à Academia Brasileira de Letras foi o primeiro passo. Nessa tradicional
instituição que, até a década de 1990, só tinha homens, nunca havia entrado uma
mulher. A primeira eleita, em 1997, foi Rachel de Queiroz. É uma entidade
machista, patriarcal e conservadora. Então, eu não tinha o por quê de celebrar
entrar em um lugar desse. Mas eu entrei para dizer que eu tenho que manifestar
sobre literatura, a oralidade. Os povos indígenas contam histórias há 2 mil
anos, a academia tem pouco mais de 100 anos. Ela tem que aprender com a gente,
os índios. Eu disse que todo mundo que escreve hoje escreve porque alguém
contou uma história antes. Não tem nenhuma escrita que nasceu de uma
experiência zero, toda escrita nasceu porque alguém contou, imaginou, sonhou,
projetou aquela história. De certa maneira, todas as histórias escritas já
foram contadas um dia por alguém que não sabe escrever.
• A sua luta é pela preservação e
valorização da cultura ancestral indígena que está no DNA do Brasil. Como
conduzir isso?
Eu
falei na Academia Brasileira de Letras e os meus colegas foram bastante
generosos de entender que a minha contribuição poderia ser naquilo que ela não
tem. Quer dizer: eu não vou para lá para corrigir a gramática portuguesa, nem
ampliar a lusofonia. Eu me propus a levar uma sinfonia para lá. Essa sinfonia é
de 305 povos, com suas línguas, com suas diversidades. Os cantos que vêm da
floresta sempre existiram, eles não foram compostos ontem. O Tom Jobim, o Villa
Lobos fizeram composições, esses povos, não. Eles cantam e contam as histórias;
alguns contam a história sobre a criação do mundo. E isso que é memória
ancestral.
• O grande conflito entre indígenas e
Congresso Nacional é a questão do Marco Temporal. A mobilização continua?
Faz
tanto tempo que esse instrumento jurídico é objeto de disputa que dá a
impressão que ele já se tornou uma questão política e não tem nada a ver com a
Constituição, que não tem nada a ver com a tradição jurídica. Ele tem a ver com
uma briga política. E o Congresso que não aceitou que o STF declarasse a
inconstitucionalidade do Marco Temporal decidiu legislar sobre o assunto.
Então, eles querem fazer um marco particular entre a Câmara e o Senado para
atender o agronegócio, para atender os inimigos dos povos indígenas.
Mas
eu costumo dizer que nós somos um povo tão antigo, a gente já passou por tantas
dificuldades, perdemos tanta coisa… Antes de os brancos chegarem aqui, o Brasil
era tudo terra indígena. Agora, está ocupado por todo tipo de empreendimento
dos brancos.
• É possível vislumbrar uma harmonia
entre brancos versus indígenas como nação brasileira, enxergar o fim dos
conflitos?
Se
você olhar a América Latina, a Argentina, o Chile, como o Brasil, nenhum país
criou integração entre esses povos. A disputa pelo território está na base
desse conflito. Os brancos querem tomar a terra dos indígenas. Seria muita
ingenuidade a gente achar que eles vão virar amigos da gente uma hora para a
outra, se há mais de 200 anos só ficam tentando dar golpe na gente. Aliás, no
último golpe que tentaram dar, o sujeito que representava o golpe disse que não
ia demarcar nenhum centímetro de terras para os indígenas. E o Marco Temporal
seria uma maneira de justificar não demarcar nenhum centímetro. Mas nós vamos
continuar existindo e eles vão acabar um dia.
• Qual sua percepção sobre a tragédia
ocorrida no Rio Grande do Sul?
Foi
uma tragédia no sentido de que foi um imprevisto, ninguém estava esperando o
tamanho desse dano monumental. Entra no rol das mudanças climáticas e daquilo
que são chamados de eventos extremos. O Brasil não tinha tornado, que é um
evento climático que acontecia lá no Golfo do México, na Flórida. Nesse final
de ano para cá, o tornado invadiu Santa Catarina, Rio Grande do Sul, arrancou
telhado, destruiu galpão, desmantelou tudo, mas o pessoal do Sul achou que eles
podiam continuar tocando o negócio deles, até que tudo virou lama. É uma grave
maneira da gente mudar a ideia sobre o clima. É uma difícil maneira de
aprender, que é morrendo e perdendo os bens materiais. Foi um prejuízo
irreparável.
• Acha que a nova geração de
brasileiros, no caso dos brancos, compreende melhor a história do Brasil e
respeita mais os povos indígenas?
As
crianças que estão com 8-10 anos de idade são todas muito mais honestas do que
seus pais. Até aquelas que veem seus pais praticando racismo e discriminação
contra negros e indígenas, veem que os pais estão errados. Então, enquanto
crianças elas vão dizer: o Brasil é terra dos indígenas, já era dos indígenas.
Mas quando crescerem e arrumarem um emprego no banco, no governo, guardarão
esse pensamento no fundo da cabecinha e continuarão assinando documento contra
o povo indígena. A cultura colonial brasileira é tão arraigada e a
superestrutura de governar o país é toda montada para promover isso que se
chama progresso: abrir estradas, construir hidroelétricas.
• A sua vinda a Brasília foi motivada
pela exposição no CCBB. O que ela representa?
O
título da exposição reporta à aventura que nós fizemos de iniciar viagens a
partir de São Paulo, durante quatro anos seguidos, e passar 30-40 dias viajando
pela Amazônia. Um sonho para qualquer pessoa que se interessa por ecologia,
cultura, pela Floresta Amazônica. Seria um presente para qualquer um, e eu
ganhei há 30 anos, percorrer aqueles rios. E convido a todos a experimentarem
um pouco dessa vivência visitando a exposição.
Fonte:
Correio Braziliense
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