Aborto: do
“teste” do Congresso à indignação pública
O aborto
voltou a ser a pauta política principal – e dessa vez o campo progressista
conseguiu participar ativamente do debate, apesar de um atropelo inicial da
ultradireita. Na semana passada, em votação que durou apenas alguns segundos, a
Câmara Federal aprovou a urgência da tramitação do PL 1904, que qualifica a
interrupção de gravidez após a 22ª semana de gestação um crime equiparável ao
homicídio. Um enorme retrocesso em um país que já está entre os mais
restritivos em relação à questão do aborto: por aqui, ele só pode ser realizado
em caso de estupro, anencefalia fetal e risco à vida da mãe. Mas não há nada
que indique até que período gestacional esse procedimento pode ser realizado,
nesses casos – pelo menos até agora.
Se
a pauta do aborto é muitas vezes interditada nos debates da esquerda, por ser
um tema sensível aos religiosos, o campo da direita vem forçando os limites nos
últimos meses. Há uma busca clara de se restringir ainda mais o direito. Há
alguns meses, o Conselho Federal de Medicina (CFM), hoje dominado pelo
bolsonarismo, emitiu nota técnica que proibia médicos de realizar a chamada
assistolia fetal após 22 semanas de gestação – o que, na prática, inviabiliza o
aborto. Pelo Brasil, há poucos centros de referência que realizam a interrupção
da gravidez em casos onde é permitida – e estão sendo sistematicamente
inviabilizados, como é o caso do hospital Vila Nova Cachoeirinha, na cidade de
São Paulo.
O
avanço, no Congresso, do PL 1904, é mais um degrau nessa ofensiva reacionária.
Mas, como se vê nesse caso, não se trata de uma questão puramente moral.
Sóstenes Cavalcante, relator do projeto, escancarou o cinismo da iniciativa ao
falar que se tratava de um “teste” para o governo, num gesto de utilitarismo
que potencializou revolta de amplos setores sociais, muito além do espectro de
movimentos sociais e feministas mais atuantes. Muito rapidamente, a pecha de
“PL do Estuprador” pegou.
“Eu
acho que nós não podemos mais ficar reféns desse grupo político. Essa é a
chance, com a força das mulheres nas ruas, de o governo assumir posições mais
firmes”, defendeu Ana Maria Costa, médica e diretora do Centro Brasileiro de
Estudos em Saúde, em entrevista ao Outra Saúde. Profissional e ativista do SUS
de longa data, Ana Costa tem uma história de relevante contribuição na
implementação de políticas de saúde para as mulheres no sistema público de
saúde. Dessa forma, consegue fazer a crítica médico-sanitária ao caráter
irresponsável do projeto enquanto enxerga o movimento político de uma direita
que tenta ampliar seu domínio através de pautas moralistas.
“Quando
Sóstenes Cavalcante disse que ia ‘testar o Lula’, ele testaria o Lula em quê?
Nas políticas sociais que o Lula pretende implementar, no melhor financiamento
que nós esperamos que o Lula vá manter a políticas sociais, na nossa pauta de
manter a vinculação dos recursos da saúde, de aumentar o financiamento e o
orçamento da saúde de forma adequada, justa e suficiente”, explicou.
Mas
desta vez a ultradireita, liderada pelo presidente da Câmara Arthur Lira, cuja
atuação se notabiliza pelo uso sistemático da barganha e da chantagem ao
governo, errou o cálculo e ativou uma resistência popular com a qual não
contava. “Foi um descuido da direita, de ter salgado excessivamente a dose, de
ter entrado em valores muito caros à sociedade brasileira”, percebeu Ana.
Isso
porque a sociedade não engole facilmente a penalização de mulheres que fazem
aborto, segundo Ana. E o fato de o PL impactar crianças que foram estupradas
foi motivo de choque geral. “Um terço das interrupções de gravidez nesses
serviços legais ultrapassa as 22 semanas. E não é porque as mulheres ou meninas
têm dúvida em relação a interromper a gravidez. Isso acontece por motivos muito
mais complexos. As meninas demoram muito a perceber que estão grávidas, demoram
muito a desconfiar que algo diferente está acontecendo no seu corpo, demoram
muito a contar para a família. E além disso, depois que descobrem, até que
consigam acessar um serviço de saúde que possa socorrer e interromper a
gravidez, também demora muito. É por esse duro contexto real que se justifica
que um terço dos casos de interrupção de gravidez acontecem após as 22
semanas”.
A
resposta da sociedade foi veemente. Durante o fim de semana, capitais encheram
as ruas de protestos contra o PL do Estuprador. “É um momento muito importante
para o Brasil, inclusive, porque essa convocatória restabelece uma
possibilidade de um debate à esquerda, de um debate que avance a democracia,
que avança os direitos sexuais e reprodutivos, os direitos sociais de uma forma
geral”, comenta Ana.
Ela
completa: “Acho que a resposta que está nas ruas e seguirá nas ruas nas
próximas semanas e meses vai ser muito forte. Arthur Lira disse que vai esperar
a poeira baixar, que houve muito incômodo. Mas a determinação de nós, mulheres,
dos movimentos feministas é de não abaixar a poeira, de manter a poeira alta e
estarmos definitiva e fortemente mobilizadas nas ruas, como começou a acontecer
imediatamente nas redes e na ação interna junto à prática”.
• Confira a entrevista completa.
Em
primeiro lugar, como você analisa a aprovação da forma como se realizou,
rápida, até atropelada, do PL 1904, que visa avançar na criminalização contra
pessoas que realizem o aborto legal via assistolia fetal após 22 semanas, em
casos de gravidez fruto de estupro?
É
abominável a forma como as mulheres foram ultrajadas com esse projeto e a forma
como o presidente da Câmara manobrou. Como eles próprios explicaram, é um
joguinho político do “centrão” e da ultradireita. Entretanto, a cada dia salgam
mais o teor e o conteúdo dos projetos.
Até
recentemente, eu tinha uma certeza que o Estatuto do Nascituro era o centro da
pauta deles. Hoje, essa pauta é difusa, dentro da temática dos direitos sexuais
e reprodutivos, mais especificamente na pauta do aborto. Eles sabem que o
aborto é um tema que polariza a sociedade, há uma moralidade importante que
divide opiniões, embora saibamos que em termos de penalização a sociedade não
passe perto de defender que as mulheres estupradas que abortam em consequência
disso devam ser presas. A sociedade penaliza moralmente o aborto, mas não
associa isso a uma necessidade de prisão.
É
muito interessante, porque o projeto atinge alguns valores muito caros para a
sociedade. O primeiro ponto sensível é a forma de tratar e proteger o
estuprador, na medida que o projeto penaliza tanto quem faz o aborto, os
médicos, ou a família que autoriza, ou qualquer outro que realize o ato da
interrupção da gravidez, penaliza a mulher que, na maioria das vezes, nós
sabemos que são jovens ou meninas.
Hoje
no Brasil, lamentavelmente, meninas e mulheres são estupradas dentro de casa, e
começam a ser estupradas muito precocemente, ainda na infância. Às vezes, são
estupradas a vida inteira por pais, padrastos, tios, padrinhos, irmãos,
mostrando a força desse patriarcado que se sente dono do corpo da mulher e as
submete a essa humilhação de vida inteira.
A
criminalização, como uma prática hedionda, tem uma repercussão muito forte na
sociedade. Não podemos esquecer que nas prisões o estuprador é objeto da ira
dos outros presos. É ele que merece a ira e a violência dos outros presos,
mostrando que nem os outros criminosos têm uma visão, digamos, bondosa, como
esse grupo de deputados e deputadas que apresentaram o PL 1904. Os deputados
que estão apoiando esse absurdo têm uma clara escolha de apoio e proteção ao
estuprador. E é por isso que estamos chamando esse projeto de PL do Estupro ou
Estatuto do Estuprador.
• Como você avalia este projeto de lei
do ponto de vista médico e sanitário?
É
muito importante lembrar que as interrupções de gravidez nesse campo do aborto
legal, dos abortos legalizados pelo Código Penal Brasileiro de 1940, se referem
às modalidades do risco de vida materno, do estupro e da anencefalia,
incorporada mais recentemente pelo Supremo Tribunal Federal, particularmente a
condição do estupro, a que mais ocorre nos serviços de aborto legal instituídos
no Brasil.
A
respeito do contexto que o PL tenta atacar, é preciso destacar que um terço das
interrupções de gravidez nesses serviços legais ultrapassa as 22 semanas. E não
é porque as mulheres ou meninas têm dúvida em relação a interromper a gravidez.
Isso acontece por motivos muito mais complexos. As meninas demoram muito a
perceber que estão grávidas, demoram muito a desconfiar que algo diferente está
acontecendo no seu corpo, demoram muito a contar para a família. E essa
situação vai se postergando, vai avançando no curso da gravidez. E além disso,
depois que descobrem, até que consigam acessar um serviço de saúde que possa
socorrer e interromper a gravidez, também demora muito. É por esse duro
contexto real que se justifica que um terço dos casos de interrupção de
gravidez acontecem após as 22 semanas.
Isso
é muito importante porque as pessoas ficam no debate acerca da data, da idade
gestacional para interromper uma gravidez. O Código Penal, inclusive, é muito
claro em relação a isso. O aborto não é permitido só até a 12ª, 16ª, 20ª
semana. Não, o aborto é admitido pelo Código Penal em qualquer idade
gestacional. Naturalmente, nós médicos e médicas gostaríamos muito, e mulheres
gostaríamos muito mais, que a interrupção da gravidez pudesse ser feita da
forma mais prematura possível, até para não demorar, não alargar, não postergar
por tanto tempo o sofrimento de portar no útero um fruto de uma violência.
O
sofrimento que isso ocasiona não é só para a mulher. O estupro, tal como nós já
estudamos e sabemos, é um mal, é um ato que causa sofrimento para a menina e
também para toda a família. Essa, inclusive, é uma das questões que fazem com
que a população tenha ficado tão indignada em relação ao projeto. Nos protestos
de rua, não havia só mulheres, estavam homens, estavam pais, estavam avós,
porque esse sofrimento atinge toda a família, toda a sociedade.
Foi
um descuido da direita, de ter salgado excessivamente a dose, de ter entrado em
valores muito caros à sociedade brasileira. E acho que a resposta que está nas
ruas e seguirá nas ruas nas próximas semanas e meses vai ser muito forte.
Arthur Lira disse que vai esperar a poeira baixar, que houve muito incômodo,
mas a determinação de nós, mulheres, dos movimentos feministas é de não abaixar
a poeira, de manter a poeira alta e estarmos definitiva e fortemente
mobilizadas nas ruas, como começou a acontecer imediatamente nas redes e na
ação interna junto à prática.
É
um momento muito importante para o Brasil, inclusive, porque essa convocatória
restabelece uma possibilidade de um debate à esquerda, de um debate que avance
a democracia, que avança os direitos sexuais e reprodutivos, os direitos
sociais de uma forma geral. Fica uma bonita imagem de que somos nós, as
mulheres, puxaremos a luta e a resistência ao fascismo implantado no Congresso
Nacional, e a essa ultradireita que assalta a democracia e impede que o país
avance em um processo civilizatório de igualdade e de justiça social. Portanto,
é um momento muito particular.
O
projeto é tão abominável sobre todos os aspectos, é tão absurdo, que fica
evidente ter sido pensado pra provocar o governo, mas não foi capaz de antever
a reação social. Quando mantêm a pena atual para o estuprador e penalizam a
menina ou a mulher com 20 anos de prisão, ou seja, o dobro da pena do violador,
não contavam com a indignação popular. Tanto é que eles agora já vêm com essa
prosa de que vão aumentar a pena do estuprador. Mas a questão não é essa. A
questão que está posta é sobre o direito conquistado, é sobre a saúde das
mulheres, sobre a manutenção das mulheres vivas, porque essa proibição vai
remeter às mulheres à prática clandestina de aborto e vai matá-las
A
cada vez essa proibição vai retomar a um tempo que o único recurso das mulheres
era a prática clandestina, porque o desespero de uma mulher de levar ao curso
final uma gravidez indesejada e uma gravidez fruto de uma violência é tão
grande que elas adotam qualquer recurso. Vai ser o tempo de voltar aos métodos
mais bárbaros, mais arriscados, que farão as mulheres morrerem de hemorragias,
de infecções. É o tempo que os profissionais de saúde serão intimidados, quando
eles, como profissionais treinados e jurados para ajudar e cuidar das mulheres,
serão obrigados, por intimidação, a negar o atendimento. E se fizerem,
atendendo ao juramento que fizeram, se fizerem a intervenção, serão penalizados
e punidos.
É
interessante isso, porque até médicos que têm um professamento religioso se
manifestam contra esse projeto, pois entendem que um direito conquistado não
pode retroceder. Quem apresentou o projeto entrou num campo muito perigoso.
• Nesse sentido, o que comentar da
postura de parlamentares , como o relator do PL 1904, Sóstenes Cavalcante, de
que era um “teste para o governo”, e outros como o Cezinha de Madureira, que
confrontado na Globo News com dados e números sobre o aborto, respondeu que
“não se importava com pesquisas, pois minha fonte é deus”? Como dialogar com
uma classe política que apresenta argumentos tão banalizadores?
É
um joguete, um objeto de barganha política. Isso no meio de um vício e uma
intenção que esse grupo da ultradireita que envolve o ódio às mulheres, a
misoginia, a obsessão pelos direitos sexuais e reprodutivos, especialmente pelo
aborto. Frequentemente, vemos muitos deputados com posição pessoal muito
alargada em relação a isso e também em relação à violência contra mulheres.
Certamente
a Câmara tem mulheres que já vivenciaram situações de aborto porque é um evento
extremamente frequente na nossa vida, na vida de todas as pessoas que praticam
uma sexualidade humana, regular. De fato, esse “teste” envolve muito mais do
que os negócios imediatos, que o agronegócio ou qualquer outro grupo político,
econômico, ao qual o deputado esteja vinculado, tem como interesse. Envolve a
ruptura da democracia, envolve uma disputa de poder e de hegemonia bem clara.
Nós não podemos esquecer o que vivemos no golpe de 2016, quando Dilma teve o
seu poder interrompido, teve o seu governo interrompido.
Sabemos
que se trata disso: uma disputa de hegemonia e poder no Brasil. Pegaram um
assunto no qual esperavam um apoio popular grande, mas não obtiveram. E nós que
estamos aqui sob incômodo e na ação política esperamos que o governo também
mude de posição em relação ao tratamento desses senhores. Nós precisamos ajudar
o governo a escancarar o jogo que está posto. E como esse grupo de deputados é,
de fato, inimigo da pátria, inimigo das mulheres e inimigo de todos os projetos
que beneficiam e apoiam o povo brasileiro.
Eu
acho que nós não podemos mais ficar reféns desse grupo político. E eu acho que
essa é a chance, com a força das mulheres nas ruas, de o governo assumir
posições mais firmes.
• E você vê uma reação firme do
governo? Acha que há uma compreensão da janela de disputa que se abre?
Primeiramente,
quero saudar a posição firme do ministro Silvio Almeida, que fez uma leitura
absolutamente pertinente. As mulheres ministras também se manifestaram, e
espero que não só se manifestem como venham conosco para a mobilização, para a
luta, que não é só das mulheres que estão na rua, é também uma luta do governo.
Parece
um momento importante, uma janela, o PL 1904 ocasionou uma ruptura de
tolerância social, que cria possibilidades de uma indignação da qual o Brasil
precisava para voltar às ruas, para pressionar. E o governo não pode nos deixar
sozinhos. O governo precisa ouvir, sentir e avaliar politicamente a
importância, porque a nossa presença na rua é um chamado, é uma convocação para
que o governo assuma as posições pelas quais apostamos e votamos.
É
um momento muito importante para a democracia brasileira, para o futuro do
Brasil. Nosso compromisso é varrer da política brasileira esse tipo de jogo, de
chantagem que não favorece a democracia ou o debate das ideias. Favorece o
constrangimento, a intimidação e, mais que isso, sacrifica uma parcela da
população que está submetida ao ódio, à ruptura com o compromisso e a dignidade
para com as mulheres.
Nós
não podemos de jeito nenhum permitir que esse projeto avance, além do que ele
já avançou. É hora de a gente barrar definitivamente, e são as ruas que vão dar
essa medida.
Precisamos
agora, nós mulheres, fazer uma campanha Brasil afora muito grande sobre não
eleger prefeitos que apoiem, ou são apoiados por esse grupo de deputados
fisiologistas e da ala do grupo político chamado “centrão”, os
ultradireitistas, fundamentalistas religiosos.
A
religião tem de voltar para o seu lugar, não pode manipular a fé das pessoas
para construir poder individual como vem sendo feito no Brasil. No Brasil e no
mundo, lamentavelmente, mas aqui no Brasil estamos nós, as mulheres, querendo
que mude, dando o nosso basta e achamos que a hora é essa, que todos venham,
trabalhadores, homens, negros, LGBTQIA+, indígenas, toda a população venha
mostrar a indignação, mas também colocar uma pauta de um Brasil democrático,
justo e civilizado.
• O PL 1904 encontra eco em órgãos como
o Conselho Federal de Medicina. Um CFM comandado por notórios bolsonaristas, um
deles, Rafael Parente, ex-secretário de Atenção Primária à Saúde no governo
Bolsonaro e na pandemia, ou seja, figura centralíssima em todo o resultado
sanitário e humanitário desastroso, dentro do qual se encontra justamente um
aumento das mortes maternas, que praticamente dobraram nos anos de Bolsonaro na
presidência.
É
verdade, toda a questão tem a mão de um CFM hegemonizado politicamente por
certas figuras que não representam a totalidade da categoria. Eu estou com duas
alunas estudando morte materna, e sabemos que alguns estudos, como da doutora
Melania Amorim, e vários outros, mostram claramente que a morte materna
duplicou, triplicou em alguns estados.
Houve,
de fato, não só morte materna por covid, mas também a negligência com os casos
de risco de morte materna aumentou, por uma desativação absurda que aconteceu
da Atenção Primária, do atendimento de rotina.
A
resolução do CFM que tenta vetar a assistolia fetal em fetos de 22 semanas
ocasionou uma reação muito grande da categoria médica. Essa tônica do órgão já
gerou uma tímida tentativa de criação de campos de oposição na disputa pelos
conselhos de medicina nos estados no ano passado, na eleição dos conselhos
regionais de medicina. Isso cresceu e agora na eleição de agosto para o CFM há
oposição a este grupo de fundamentalistas e negacionistas que vêm conduzindo o
Conselho da forma mais absurda, anticientífica e autoritária possível. Esse
grupo cresceu e está apresentando chapas de oposição em 18 estados, com chance
de ganhar em mais de 60% deles.
Isso
vai mudar a configuração do Conselho Federal de Medicina, com certeza. E é
muito importante que a gente fale sobre essas candidaturas que trazem nomes
importantes. É uma coisa muito importante e inovadora, porque a categoria
médica, essencialmente conservadora, também chegou no seu limite. Essas
atitudes do Conselho testaram o limite da categoria médica também e ela está
reage, exige medicina baseada na ciência, ética, dignidade, compromisso com o
SUS e com a população, e claramente se manifesta contrária a essa recomendação
do Conselho Federal de Medicina.
A
categoria médica tem uma história de proximidade e adesão ao fascismo e acho
que essa característica também entrou no esgotamento. Não dá mais para a
medicina ser deturpada na sua origem, que é uma profissão do cuidado, é uma
profissão do zelo pela condição humana. Sabemos que o capital distorceu muito o
interesse do médico, mas até isso, eu diria, chegou no limite. A crítica a uma
medicalização, a um interesse muito prioritário do médico aos ganhos do
capital, dos planos de saúde, hospitais, ou seja, todo um sistema ao qual se
curva, também está em debate. Esse grupo volta a discutir a medicalização, o
intervencionismo, a saúde como um direito, os exageros da medicina lucrativa, e
isso é muito bom do ponto de vista de um futuro.
Vamos
acompanhar esse movimento que está acontecendo, monitorar, acompanhar na medida
do possível, e apoiar essas chapas que se apresentam em oposição ao CFM que
está aí. Não podemos esquecer que, no tempo da pandemia e já antes, desde que
houve uma adesão do CFM à ultradireita, eles fazem dobradinhas de intervenções.
Foi assim quando o Conselho Federal de Medicina ajudou a colocar sob
desconfiança a vacina, quando questionou o isolamento social, quando deu espaço
para “tratamentos” falsos de covid… Enfim, o órgão tem sido um parceiro dessa
linha política.
O
PL 1904 vem nessa esteira. Na hora que o STF colocou limite e derrubou a
determinação do CFM, mesmo transitoriamente, porque ainda está em julgamento e
está interpelado, inclusive, por alguém vinculado a esse grupo, que é o
ministro “terrivelmente evangélico”, o Congresso vem com um remédio mais forte,
mais amargo. O Congresso tem atuado em uma constante prática de chantagem. Isso
mostra a molecagem que orienta a ação do Congresso hoje, quando se trata de
atendimento aos interesses dos grupos que o financiam, ao qual estão ligados,
ou aos interesses deles próprios em relação aos grupos de capital, aos grupos
religiosos ou o que seja. A característica da irresponsabilidade com o coletivo
por parte do Congresso precisa ser denunciada.
O
tempo é agora, quando estamos elegendo prefeitos, e essa eleição de prefeitos é
determinante, como nós sabemos, para o futuro do Congresso Nacional. Nós
precisamos pensar fortemente em incidir sobre as pequenas prefeituras, que são
os currais eleitorais dessa corja de deputados que vêm para cá causar dano à
população brasileira e à nossa democracia.
• Do ponto de vista político, como você
disse, o momento parece abrir uma oportunidade de retomada de lutas sociais e
de rua, com pressão popular que possam retomá-las das mãos da ultradireita, o
que até chega a ser pedido pelo presidente Lula em algumas declarações.
Sim,
na quinta-feira logo pela manhã os grupos que se mobilizam em torno de tais
questões já estavam em atividade total. E as manifestações foram organizadas
com bastante rapidez, surpreenderam pelo volume nas ruas de São Paulo, Rio;
aqui em Brasília mesmo, proporcionalmente, foi muito robusta, e eu acho que seu
vigor mostra que há assuntos que mobilizam. Neste caso, ultrapassou a janela da
tolerância. Podemos ver que outras convocatórias, como o 1º de maio, não
mobilizaram igual.
Estamos
aqui para não deixar baixar a poeira, vamos mantê-la alta, vamos incomodar,
porque as mulheres não podem ser vilipendiadas dessa forma.
• Pensa que essa discussão pode evoluir
para outras questões do direito ao aborto em outras circunstâncias, além
daquele que a lei brasileira permite hoje?
Esse
fator que mobiliza a ida do povo nas ruas, e as próximas idas do povo nas ruas
são muito favoráveis para uma mudança da opinião popular. Mas ainda acho que
nós teremos alguns quilômetros à frente para um alargamento maior do direito ao
aborto. Não vai ser com essa legislatura que nós avançaremos, provavelmente
não. Por certo, atingiremos um patamar no debate popular mais interessante,
mais bem informado, com mais compreensão do significado da legalização do
aborto.
Nós
não podemos esquecer que os países vizinhos têm avançado nessa pauta. Colômbia,
México, Argentina, Uruguai. E é uma pauta que as mulheres latino-americanas
mantêm viva há muito tempo. Agora, precisamos construir mais, precisamos de
mais mulheres, precisamos de mais compromissos da esquerda. Os partidos de
esquerda não podem trair as mulheres sob pena de esvaziar o voto feminino para
esses partidos.
As
mulheres hoje, enquanto atrizes políticas, têm cartas muito firmes. E isso
fortalece muito as possibilidades. Nós não podemos esquecer que lá pelos anos
80 o debate sobre o aborto no Congresso Nacional era muito mais avançado em
termos de ser um debate democrático, com prioridade à questão da saúde, do
direito das mulheres e não essa loucura fundamentalista que se transformou
atualmente, a partir do protagonismo desse grupo religioso e da ultradireita
que manobra o Congresso.
• Para fechar com uma reflexão um pouco
mais ampla, isso tudo aqui debatido faz parte de uma certa encruzilhada
histórica da democracia, representada por este Congresso que, como você mesma
diz, já fez debates mais avançados e agora se reduz a um moralismo cada vez
mais histérico. Esse moralismo pode estar conectado a uma certa crise de
reprodução do próprio sistema capitalista, que se manifesta em questões como a
catástrofe climática do Rio Grande do Sul, diretamente relacionada com o nosso
modo de reprodução socioeconômica?
Sem
dúvida que não interessa à ultradireita escancarar os estragos do
neoliberalismo, do agronegócio, essa forma de gerir o próprio capitalismo e o
rentismo e suas consequências ao país e ao meio ambiente. Mas essa pauta não
está imune a estragos, porque eles tentam impor uma pauta de costumes que
também é geradora de mais desigualdade, pois quem será penalizado são as
mulheres pobres, negras, as meninas.
Isso
também nos convoca a uma qualificação desse debate e uma vinculação das pautas
aos interesses maiores que estão postos. Quando Sóstenes Cavalcante disse que
ia “testar o Lula”, ele testaria o Lula em quê? Nas políticas sociais que o
Lula pretende implementar, no melhor financiamento que nós esperamos que o Lula
vá manter a políticas sociais, na nossa pauta de manter a vinculação dos
recursos da saúde, de aumentar o financiamento e o orçamento da saúde de forma
adequada, justa e suficiente.
Estou
dizendo isso apostando que o projeto dos ministros Simone Tebet e Fernando
Haddad são do interesse da Faria Lima, da Banca dos Rentistas, e não será
vencedor. E, na medida em que o Lula fique firme e impeça o avanço desse
projeto, eles vão espernear, o agronegócio vai espernear. Até quando o
agronegócio será respeitado e não tão ajudado, porque o agronegócio não caminha
por si, ele caminha nas tetas do Estado?
É
preciso colocar o Estado, como o Lula prometeu na eleição, a serviço do povo;
manter a centralidade das necessidades populares no projeto do Estado
brasileiro. Queremos que essa mobilização ajude também. Estamos aqui dizendo
que a gente não aceita o projeto e o constrangimento nem da sociedade, nem do
governo, em relação à chantagem que parte do Congresso Nacional quer impor ao
Brasil.
Fonte:
Por Ana Maria Costa em entrevista a Gabriel Brito, para Outra Saúde
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