A história
da mulher que vendeu o tempo no século 19 (e do homem que tentou impedi-la)
Por
mais de um século, um membro da família Belville costumava visitar o
Observatório Real de Greenwich, no Reino Unido, pelo menos três vezes por
semana. Ele ou ela acertava o relógio e saía para vender a informação para seus
clientes em Londres.
A
última "vendedora de tempo" da família, Ruth Belville (1854-1943),
passou mais de meio século consultando a hora certa e passando adiante a
informação.
Certa
vez, um concorrente chamado St. John Wynne tentou arruinar os negócios da
família. Mas o tiro saiu pela culatra. No final, o que ele conseguiu foi apenas
promover o serviço de venda da hora certa de Ruth Belville.
Para
tentar atrair clientes para sua companhia de sincronização do tempo, Wynne fez
um discurso afirmando que o método dos Belville era "surpreendentemente
ultrapassado". O discurso foi publicado posteriormente pelo jornal
britânico The Times.
Wynne
também insinuou que Ruth Belville teria usado seus dotes femininos para
conseguir vantagens.
• Questão de tempo
A
empresa dos Belville era um negócio familiar, criado em 1836 por John Henry
Belville (1795-1856). Ele era filho de um refugiado da Revolução Francesa, que
passou a trabalhar como vigia e aprendiz do astrônomo real, John Pond
(1767-1836).
Ao
descrever Belville para um colega, Pond afirmou que o jovem era "regular,
mas não inteligente".
As
empresas que queriam saber a hora exata no início do século 19 — como
relojoeiros, bancos e empresas do setor financeiro de Londres — normalmente
enviavam um funcionário para o Observatório Real. Eles batiam à porta e pediam
para ver o relógio.
Mas
o astrônomo sucessor de Pond, George Airy (1801-1892), ficou cansado desta
situação. Ele limitou o acesso ao relógio a apenas uma vez por semana, às
segundas-feiras.
A
redução dos serviços deixou insatisfeitas as empresas que dependiam da hora
certa, o que ofereceu a Belville a oportunidade de iniciar seus negócios de
divulgação da hora.
Como
ex-assistente de Pond, ele tinha acesso a Greenwich e visitava o observatório
todas as manhãs.
A
primeira coisa que ele fazia era acertar seu relógio de bolso. Em seguida, ele
saía com seu carrinho para visitar os clientes, que pagavam uma taxa para olhar
a hora certa e acertar seus próprios relógios.
Quando
morreu, John Henry Belville tinha mais de 200 assinantes. Sua terceira esposa,
Maria (1811-1899), assumiu o serviço.
E,
com a morte de Maria, foi a vez de Elizabeth Ruth, a filha do casal, passar a
ser a vendedora do tempo.
• 'Tempo é dinheiro'
Todos
os Belville usavam o mesmo relógio de bolso, fabricado pelo relojoeiro John
Arnold (1736-1799), originalmente para o duque de Sussex.
O
instrumento era confiável, mas o duque o rejeitou, dizendo que "parecia um
urinol".
A
ideia era incrivelmente simples — tão simples que os pioneiros das tecnologias
mais avançadas subestimaram sua genialidade.
Wynne
(ou Winne) conversou com um grupo de conselheiros e parlamentares de Londres,
indicando a possibilidade de erros no método dos Belville.
Na
qualidade de diretor da empresa Standard Time Company, ele afirmou aos
presentes que "as irregularidades dos relógios públicos de Londres são
diretamente responsáveis por imensos prejuízos financeiros".
Wynne
descreveu a "inconveniência" do sistema dos Belville e culpou os
"caprichos atuais" pela "apatia demonstrada pelo governo, pelo
conselho do condado de Londres, pela corporação municipal e pelo público".
Ele
disse ainda que "pode ser surpreendente para as companhias atuais
descobrir como a hora era distribuída para o comércio de relógios".
"Uma
mulher, de posse de um cronômetro, obteve permissão do astrônomo real da época
(o que talvez nenhum homem tivesse conseguido) para ir ao Observatório acertar
o relógio sempre que quisesse."
"Os
negócios são conduzidos até hoje pela sua sucessora, ainda uma mulher, creio
eu."
Depois
de insultar a quase todos, Wynne prosseguiu, comparando Londres
desfavoravelmente em relação a Paris, Berlim e "outras cidades do
continente".
Ele
também criticou severamente os donos de relógios particulares por
"deixarem de reconhecer suas responsabilidades" e lamentou o
"comportamento do público em geral em relação à hora certa".
O
objetivo da sua palestra era promover a Standard Time Company, uma empresa
comercial que fornecia pulsos horários elétricos, de hora em hora, para
relógios que eram corrigidos automaticamente.
Um
editorial do Times sobre "relógios mentirosos" provocou grande debate
na seção de cartas dos leitores.
Um
certo sr. John Cockburn, da região de Upper Norwood, no sul de Londres, sugeriu
"algum tipo de censura à hora certa mantida pelos relógios expostos ao
público nas ruas de Londres".
"Não
é incomum encontrar, em um espaço de algumas centenas de metros, relógios com
três ou quatro minutos de variação entre si", escreveu o leitor.
"Altamente desejável como individualismo em muitos aspectos, mas fora de
lugar na horologia."
Para
ele, "um relógio mentiroso é uma abominação e não deveria ser
tolerado".
H.
Berthoud, de Wimbledon, escreveu ter ouvido "muitos estrangeiros"
exclamarem surpresos que Londres não tinha relógios precisos nos
"cruzamentos mais importantes da metrópole".
Já
Robert Orb estava particularmente irritado: "Em Berna e Neuchatel [Suíça],
relógios públicos eram controlados pneumaticamente 25 anos atrás."
"Mais
ou menos na mesma época, todos os escritórios telegráficos do Império Indiano
recebiam um sinal horário precisamente às 16 horas. E, aqui estamos, em
Londres, no ano de 1908, ainda perdendo tempo, de forma tola e impotente, com
inúmeros 'relógios mentirosos', que não são apenas um escândalo e uma desgraça,
mas também infligem altos prejuízos pecuniários à comunidade."
"A
desalentadora indiferença e estupidez do público é liderada pelos estúpidos
órgãos do governo municipais e outros, que ficam tagarelando sobre o trabalho
prático, mas são incapazes de apreciar o profundo significado do provérbio
inglês 'tempo é dinheiro'", conclui o leitor do Times.
Nenhum
desses homens que escreviam furiosamente para os jornais da época parecia
perceber o verdadeiro impacto do seu discurso sobre o humilde negócio de Ruth
Belville.
Longe
de incentivar as pessoas a abandonar os antigos métodos e adotar o sincronismo
eletrônico, a correspondência despertou a atenção de muitas pessoas que ainda
não eram assinantes dos serviços de Belville.
Ter
um serviço pessoal como aquele virou moda — e poder pagar pela atualização da
hora certa três vezes por semana trazia consigo um certo grau de status.
A
atenção da imprensa rendeu a Ruth Belville o apelido de Dama do Tempo de
Greenwich. Ela apareceu em publicações como a revista Tatler e o jornal Evening
News.
Posteriormente,
ela declarou que St. John Wynne havia dado a ela grande visibilidade.
O
acadêmico Donald de Carle (1893-1989), do Instituto Britânico de Horologia e
autor de muitas obras de referência sobre o tema, conheceu e entrevistou Ruth
Belville em 1939, um ano antes da sua aposentadoria.
Ela
descreveu como saía de casa para chegar ao Observatório Real antes das 9 horas
da manhã, acertar seu relógio de bolso e receber o certificado de precisão.
De
Carle conta que "ela sempre se referia ao relógio como Arnold, como se
fosse o nome de batismo de um amigo querido".
Ela
chegava ao observatório e"dizia: "Bom dia! O Arnold está quatro
segundos adiantado hoje." Na sequência, ela retirava o Arnold da bolsa e
entregava para você.
"O
regulador ou relógio padrão era verificado e o relógio de bolso era devolvido.
A transação estava terminada", descreve ele.
Depois
de acertar o Arnold para os próximos dias, ela passava o resto do expediente
levando a hora certa para seus clientes.
Belville
manteve seus negócios regulares até 1940, quando a Segunda Guerra Mundial fez
com que aquela senhora de 86 anos passasse a ter dificuldades para andar com
segurança pelas ruas.
Ela
morreu três anos depois, com Arnold ao seu lado, deixando o relógio para o
Museu da Clockmakers' Company, em Londres.
O
tempo de Ruth Belville havia acabado. Seu obituário foi publicado em diversos
jornais de circulação nacional no Reino Unido.
A
tradição dos Belville morreu com a Dama do Tempo de Greenwich.
Fonte:
BBC News
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