Jean Marc
Von Der Weid: ‘Água vai, água vem’
As
inundações no Rio Grande do Sul não são novidade. Nos anos 40 do século passado
houve uma inundação avassaladora, recorde que se manteve até essa de dias
atrás. Novidade é a frequência do evento: no ano passado houve mais duas
enchentes de grandes proporções, entremeadas por uma seca pesada. Foi uma
espécie de pré-estreia da catástrofe atual, cujas proporções são sim, o grande
fato novo.
Muito
já foi dito sobre a combinação de fatores climáticos que geraram precipitações
atípicas de chuvas, concentradas em poucas horas e dias, ultrapassando a
capacidade de escoamento de rios, lagos e lagoas. Por outro lado, vários
artigos apontaram para a ausência de manutenção nas infraestruturas de controle
de enchentes montadas e incrementadas desde os anos 40 e que desabaram com a
pressão das águas. E foi muito denunciada a posição do governo do Rio Grande do
Sul, desfigurando a legislação ambiental e facilitando a eliminação de matas
ciliares em benefício do agronegócio (entre outros absurdos).
O
que falta para a opinião pública acordar? A meu ver a mídia convencional tem
tratado estes eventos corretamente (até certo ponto), apontando para o
aquecimento global como motor da mudança climática e das catástrofes, além das
responsabilidades de diferentes níveis de governo. O negacionismo é uma
raridade em jornais e televisões, mas impera nas redes sociais. Onde a mídia
convencional falha é ao não apontar as causas mais profundas dos fenômenos
climáticos. A culpa é do aquecimento global, e este é provocado pela queima dos
combustíveis fósseis. Mas a explicação para por aí.
Por
outro lado, importantes atores econômicos cuja ação está na origem das
catástrofes ignoram solenemente o seu papel criminoso e isto se reflete na
política, já que eleitos de todos os níveis têm, muito frequentemente, algum
“rabo preso” com poderosos lobbies que financiam as suas campanhas.
O
melhor exemplo deste negacionismo aberto ou disfarçado é o empresariado do
agronegócio e a sua bancada ruralista no Congresso e em inúmeras Assembleias
Legislativas e Câmaras de Vereadores, além de representantes em governos
estaduais e prefeituras. Para estes atores da economia e da política, a
gritaria na mídia convencional não tem o menor efeito.
Eles
continuam, impávidos, devastando o meio ambiente com desmatamentos e queimadas,
legalizando a ocupação de matas ciliares e encostas, poluindo terras e águas
com agrotóxicos cada vez mais perigosos, eliminando a biodiversidade,
destruindo solos, ampliando as áreas áridas e semiáridas, para citar apenas
alguns dos perversos efeitos da relação entre o agronegócio e a natureza. Mais
de 20 projetos de lei estão sendo aceleradamente tramitados no Congresso e cada
um deles tem efeitos que favorecem o aquecimento global.
Quem
pensa que este é um caso de ignorância está sonhando. Se assim fosse um esforço
de informação e de educação poderia superar a falta de consciência, pelo menos
para uma boa parte deste público. Infelizmente, o fator essencial é outro:
chama-se ganância (greed, em inglês). Ganha-se mais dinheiro e mais rapidamente
adotando o modelo destrutivo do meio ambiente e do planeta. O que importa é o
lucro máximo de curto prazo.
Muitos
destes ruralistas estão conscientes dos problemas que causam, mas esperam que
outros façam o esforço de evitar que eles se agravem, enquanto embolsam lucros
polpudos com suas práticas destrutivas. Se os impactos ambientais dificultarem
a produção, o agronegócio primeiro passará a conta das perdas para o governo de
plantão que a abonará, como todos têm feito nos últimos 50 anos, senão desde a
chegada de Pedro Álvares Cabral. Quando as coisas piorarem, abandonarão a
devastação que provocaram e irão viver de gordas rendas em algum lugar do
planeta que não esteja em grande risco.
A
má notícia é que não vai dar mais para ir para Miami, já que esta meca dos
rentistas brasileiros está a caminho de ser alagada pelo aumento do nível do
mar em meados deste século. Os oásis dos ricos serão cada vez mais diminutos, à
medida que a temperatura média do planeta vai subindo, mas o dinheiro permitirá
que eles prolonguem seu bem viver por mais tempo que os 90 a 99% da população.
Mais da metade destes menos aquinhoados em todo o mundo já tem uma vida repleta
de carências básicas, que a fazem mais curta. Mesmo no cataclismo, as
diferenças de classe permanecem.
Se
convencer agentes econômicos dos impactos catastróficos de seus negócios é uma
quimera, como conseguir que eles deixem de agir como agem? É papel do Estado
garantir o presente e o futuro dos cidadãos e a história mostra que avanços no
controle dos impactos do capitalismo, quando ocorrem, são resultado de medidas
públicas restritivas com punições severas para os infratores. Mas o capitalismo
não é dominante por acaso e estes controles (pontuais, localizados e
temporários) nunca foram capazes de deter a catástrofe que já nos atinge em
todo o mundo. Eles sequer foram capazes de limitar a aceleração do tsunami
ambiental em curso.
Mais
uma vez, não se trata de pura ignorância ou negacionismo entre os políticos de
todo o planeta, embora existam muitos Bolsonaros, Trumps e Mileis por aí.
Presidentes dos Estados Unidos já foram iluminados por estudos científicos e
até de think thanks militares apontando para muitos dos riscos crescentes, pelo
menos desde a presidência de Jimmy Carter. Mas as pressões dos lobbies
interessados na manutenção do status quo prevaleceram, junto com a reação dos
eleitores a cada ameaça ao destrutivo “american way of life”. Obama foi mais
longe do que todos seus antecessores e sucessores, pelo menos nos seus
discursos nos seus últimos anos de governo, 2015 e 2016. Barack Obama apostou
em jogar suas últimas fichas políticas na COP de Paris que comemorou um aparente
sucesso ao arrancar um acordo para conter o aquecimento global em 1,5º C até
2050.
Infelizmente,
o relatório do IPCC que serviu de base aos debates em Paris, lançado em 2013,
já estava defasado em relação aos últimos desdobramentos da crise climática e
este aquecimento limite já podia ser considerado ultrapassado. Os primeiros
meses de 2024 viram este índice, previsto para meados do século, ser batido
várias vezes, embora ainda não na média anual. Este recorde, anualizado, deve
ser batido e ultrapassado ainda neste ano ou no próximo. Agora a aposta é
impedir o aquecimento acima de 2º C até meados do século, mas a rapidez com que
o índice anterior foi batido não promete sucesso nesta empreitada.
Barack
Obama foi imediatamente desautorizado por seu sucessor, o nefando Donald Trump,
que se retirou do acordo de Paris (Joe Biden voltou a ele na sequência). Outros
presidentes tentaram aplicar algumas medidas de restrição ao uso de
combustíveis fósseis, como foi o caso de Emmanuel Macron, na França, submetido
a fortes pressões de motoristas (os famosos coletes amarelos), profissionais ou
não, e que foi obrigado a recuar.
A
indústria petrolífera, apesar de profetizar o “fim da era do petróleo” para
breve, está se mostrando disposta a pressionar pelo uso dos combustíveis
fósseis “até a última gota”, assegurando lucros polpudos com as altas previstas
dos preços. E as petroleiras contam com o suporte de todos os governos dos
países mais importantes que gastaram a bagatela de sete trilhões de dólares
anualmente em subsídios e isenções de impostos para manter os preços acessíveis
aos usuários de todo tipo. Todos os gastos voltados para a chamada economia
verde são uma fração mínima deste valor.
Ou
seja, entre “responsáveis” (ou irresponsáveis) políticos e agentes econômicos
poderosos, estamos em pleno “business as usual” (mais do mesmo) em termos de
contenção (mais bem ampliação) das emissões de gases de efeito estufa.
E o
público em geral? Podemos classificá-lo em vários tipos: (i) Negacionistas
religiosos: os que acreditam que as catástrofes climáticas acontecem como
punição divina por pecados cometidos. (ii) Negacionistas liberais: os que
acreditam que a “narrativa” do aquecimento global é um engodo comunista para
impedir o livre funcionamento do mercado. (iii) Negacionistas nacionalistas de
esquerda: os que acreditam que o aquecimento global é uma criação do
imperialismo para impedir o progresso dos países em desenvolvimento.
(iv)
Defensores do controle relativo das emissões dos GEE (uma variante da categoria
anterior): são os que reivindicam a liberdade de seguir emitindo GEE pelos
países em desenvolvimento e cobrando dos países capitalistas avançados o
esforço necessário para limitar o aquecimento global. Algo como: “vocês já
poluíram e aqueceram o mundo para se desenvolverem de modo que agora o peso das
medidas de controle das emissões deve recair sobre vocês”. Em outras palavras,
este é o time que defende o direito “histórico” de aquecer o planeta. (v)
Defensores de políticas de controle das emissões de GEE, desde que não afetem o
modo de vida que adotaram.
Esta
última categoria é muito numerosa e politicamente influente. São os que não
aceitam deixar de usar seus carros particulares como meio de transporte,
comerem picanha até regurgitar e consumirem sem restrições todos os confortos,
necessários ou não, oferecidos pelo mercado. São os que estrebucham cada vez
que os preços dos combustíveis sobem, uma medida essencial para fortalecer o
caminho para sua substituição.
No
Brasil temos uma combinação muito negativa destas categorias, começando pelos
responsáveis políticos.
Lula
elegeu-se com um discurso forte contra os desmatamentos e colocou-se como um
campeão ambientalista na COP de Sharm-el Sheik, no Egito, em 2022, pouco depois
de sua eleição esfregando o focinho de Jair Bolsonaro no fotochart. Lula
prometeu zerar os desmatamentos em todos os biomas do Brasil durante o seu
governo. Não disse, porém, uma palavra sobre a redução do uso de combustíveis
fósseis. Uma vez no governo, Lula passou a lutar pela ampliação da exploração
do petróleo, pelo controle dos preços dos combustíveis e pelos investimentos da
Petrobras em refino. Com essa postura Lula se colocou na categoria (iv) da
nossa tipologia.
Já
a promessa de “eliminar os desmatamentos em todos os biomas do Brasil” ficou
restrita à Amazônia, em 2023. Mas mesmo neste bioma temos que constatar que o
patamar de desmatamentos do governo de Jair Bolsonaro era tão elevado que a
queda de 60% no índice ainda o manteve mais alto do que nos anos de Dilma. E,
por outro lado, os índices no Cerrado dobraram e aumentaram (em porcentagens
menores) em todos os outros biomas. Finalmente, mesmo na Amazônia as queimadas
foram recorde em 2023, elevando muito a nossa contribuição para o aquecimento
do planeta.
É
verdade que contribuímos pouco para as emissões oriundas do uso de combustíveis
fósseis, mas as emissões por desmatamento e queimadas nos levam para o quinto
lugar entre os maiores emissores de GEE. Estamos atrás apenas dos Estados
Unidos, China, Rússia e União Europeia (como conjunto).
Em
relação ao desmatamento/queimadas o governo mantém uma atitude ambígua, com um
discurso contrário às práticas destrutivas do agronegócio, mas sem medidas
robustas, necessárias para contê-las. Pior ainda, o governo mandou uma mensagem
simpática aos desmatadores ao repelir uma carta da União Europeia anunciando a
decisão de não importar qualquer produto agropecuário oriundo de áreas
desmatadas.
O
curioso é que esta discussão ocorreu no quadro das negociações do acordo União
Europeia/Mercosul, embora a decisão europeia não esteja subordinada a este
entendimento e faça parte de uma votação do parlamento europeu que está
ratificada por quase todos os parlamentos nacionais. Mais curioso ainda é o
fato de que o acordo contém cláusulas extremamente negativas para nós e nossos
vizinhos (que mereciam ser repudiadas), mas a reação se deu sobre a carta
ameaçando os desmatadores, de interesse do agronegócio exportador de carne
bovina.
O
público brasileiro tem sido solidário com as vítimas da catástrofe gaúcha, mais
do que em eventos anteriores. Resta saber se os hábitos de vida de cada um são
compreendidos como parte das causas do desastre. E se cada um estaria disposto
a mudar de vida para salvar o planeta para os nossos filhos e netos.
É
claro que há uma importantíssima responsabilidade do governo na redução das
emissões de GEE por uso de combustíveis. As pessoas só abandonarão o transporte
privado individual (carros) para usar o transporte público quando as adequadas
políticas de Estado criar um transporte público de qualidade (metrôs, ônibus,
trens, barcas) e inibirem o uso de carros privados a não ser para atividades
essenciais. Não é isso que estamos vendo. Ao contrário, investe-se ou
subsidia-se a indústria automotora e ignora-se o transporte coletivo. O modal
de transporte de cargas continua sendo baseado em caminhões, não só muito
poluente e gerador de GEE, mas também caro, em comparação com outras formas,
predominantes nos países desenvolvidos.
O
caminho a percorrer – se quisermos fazer a nossa parte na defesa do futuro do
planeta – vai ser árduo e talvez demasiado tardio.
Fonte:
A Terra é Redonda
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