quinta-feira, 2 de novembro de 2023

Quem são os cristãos de Gaza, agora abrigados em duas igrejas

"De repente, em questão de segundos, tornei-me uma pena no ar", diz Suheil Saba, sobrevivente de um ataque aéreo israelense à Igreja de São Porfírio, na Cidade de Gaza.

"Fui jogado de um lugar para outro. O concreto caía no chão, as pessoas tropeçavam em mim e eu podia ouvir os gritos de crianças e mulheres."

Saba é o secretário do Conselho da Igreja Ortodoxa Árabe.

Ele sofreu ferimentos na cabeça, nas costas e nas pernas depois que "um míssil caiu diretamente sobre o prédio da sede do conselho, matando instantaneamente nove membros de uma única família", conta à BBC.

"O bombardeio foi intenso, como um terremoto."

O restante da Igreja de São Porfírio ainda está intacto e funcionando, mas Saba decidiu buscar abrigo nas proximidades, na Igreja Católica da Sagrada Família.

Ele está entre as centenas de membros da comunidade cristã que estão abrigados nas duas únicas igrejas cristãs da Faixa de Gaza.

Os moradores do norte de Gaza abandonaram as suas casas em resposta aos avisos de evacuação das forças militares de Israel.

Eles foram aconselhados a se deslocarem ao sul do território, mas a área também tem sido alvo de ataques aéreos de Israel.

·         Ataque aéreo

Em 19 de outubro, um míssil atingiu um prédio dentro do complexo da Igreja de São Porfírio. Segundo membros da igreja e testemunhas oculares, 17 pessoas morreram e dezenas ficaram feridas, incluindo crianças.

Israel negou ter como alvo a igreja. O porta-voz do Ministério das Relações Exteriores de Israel, Lior Hayat, disse à BBC que houve "danos colaterais" depois que suas forças lançaram um ataque à infraestrutura do grupo palestino Hamas nas proximidades.

"Tudo aconteceu tão rápido", diz Mona, que prefere não revelar seu nome verdadeiro.

"Foi um ataque com míssil sem aviso prévio. Em seguida, uma poeira espessa se espalhou. Ninguém conseguiu ver nada."

O vídeo obtido pela BBC mostra moradores e agentes da Defesa Civil rastejando sobre os escombros e arrastando os destroços com as próprias mãos, quase na escuridão, em busca de pessoas presas.

Imagens do que parecia ser uma sessão de fotos de um bebê recém-nascido dormindo calmamente foram encontradas em meio aos escombros, mas a BBC não conseguiu verificar se ele estava entre os sobreviventes.

Pais também vêm correndo para batizar seus filhos por medo do que pode acontecer com eles.

Munther Isaac, um cristão palestino que vive na Cisjordânia, disse à BBC que "os cristãos na Faixa de Gaza estão se preparando para os piores cenários".

·         Cristãos abrigados em igrejas

Cerca de 900 cristãos estão abrigados na Igreja de São Porfírio, afiliada à comunidade ortodoxa grega, e na Igreja Católica da Sagrada Família.

Apenas 1.100 pessoas pertencem aos grupos ortodoxos gregos e católicos de Gaza, representando menos de 0,05% da população do território. A maioria é de ortodoxos gregos, espalhados por Gaza.

Segundo um membro da Igreja Ortodoxa Grega, que preferiu permanecer anônimo, alguns desses cristãos chegaram a Gaza depois da "Nakba" de 1948 – a palavra árabe para "Catástrofe", como é conhecido o êxodo forçado de mais de 700 mil palestinos durante a guerra árabe-israelense.

Outros são descendentes dos primeiros habitantes da região, que "vivem nesta terra desde 402 d.C., depois de se converterem do paganismo ao cristianismo", acrescenta.

Elias Jarada, membro do Conselho da Igreja Árabe Ortodoxa, destaca que as raízes dos cristãos de Gaza remontam a antes de 400 d.C., sendo a maior parte dos atuais moradores descendentes da população antiga.

·         Bloqueio

Desde 2007, Israel e o Egito impõem um bloqueio a Gaza, controlando o que entra e sai.

Por causa disso, moradores de Gaza só estão autorizados a sair com permissões oficiais solicitadas antecipadamente.

Reem Jarada, mãe de três filhos que mora na cidade de Gaza com a família, viu a irmã pela última vez, que mora na Cisjordânia, há cinco anos. Ela mudou-se para lá há mais de 25 anos.

Tanto Gaza quanto a Cisjordânia (incluindo Jerusalém Oriental) são ocupadas por Israel desde 1967. Os territórios formam a Palestina, que busca reconhecimento internacional como Estado.

No entanto, Reem diz que as autorizações de viagem israelenses são "sempre concedidas a alguns membros da família ou apenas às crianças". Ela acrescenta: "Meu marido nunca recebeu uma".

"As filhas (da minha irmã) são casadas e o filho dela se formou na universidade, mas não podíamos compartilhar sua alegria", diz. "Tentamos nos comunicar pela internet, mas nem sempre está disponível".

·         'Nossas celebrações são modestas'

"Praticamos todos os nossos rituais religiosos, mas é diferente para os cristãos na Cisjordânia e em Belém. As nossas celebrações são modestas devido à situação em Gaza", disse à BBC um membro da Igreja Ortodoxa Grega que não quis revelar seu nome.

Segundo Elias Jarada, membro do Conselho da Igreja Árabe Ortodoxa, "somos poucos em Gaza. Queremos que os nossos filhos se abram à comunidade cristã e conheçam as suas famílias e levem uma vida normal", diz.

"Os limites (da vida) aqui são muito rígidos", em alusão ao ataque de 19 de outubro que resultou na perda de "quase 2% da comunidade cristã, incluindo uma família que foi dizimada. É terrível".

·         'Sem opções para a vida; apenas opções para a morte'

Segundo o padre Joseph Assad, vice-presidente do Patriarcado Latino da comunidade católica em Gaza, há aproximadamente 550 refugiados na igreja, incluindo 60 com necessidades especiais e crianças de apenas cinco anos.

"Estamos no prédio da escola do Patriarcado Latino, que não tem quartos, banheiros nem coberturas".

Quando a igreja de São Porfírio foi bombardeada, a situação piorou porque cerca de 100 pessoas que estavam refugiadas ali ficaram desabrigadas, segundo um membro da Igreja Ortodoxa Grega.

·         Ataque do Hamas em 7 de outubro

Israel afirma que sua ofensiva militar é uma resposta aos ataques do Hamas perpetrados em 7 de outubro, quando homens armados atacaram comunidades do sul de Israel, matando mais de 1.400 pessoas e fazendo 239 reféns.

Na quarta-feira (1/11), o Ministério da Saúde de Gaza, administrado pelo Hamas, informou que 8.796 pessoas, das quais 3.648 crianças, foram mortas como resultado da ofensiva militar israelense.

Elias Jildeh, que está abrigado na paróquia latina, resume como se sente.

"Sentimos raiva e injustiça, e não há proteção, como se estivéssemos em uma selva."

Reem se pergunta o que acontecerá com Gaza.

"Seremos deslocados? Penso nos meus filhos; gostaria que eles pudessem sair daqui e trabalhar no exterior. Nos acostumamos com esta vida, mas por que eles deveriam sofrer conosco?"

 

Ø  Os ataques de Israel contra áreas indicadas como 'seguras para civis'

 

Desde que os militares israelenses emitiram o primeiro de vários avisos para civis abandonarem o norte de Gaza, centenas de milhares de habitantes da região se deslocaram para o sul da Faixa.

Mas o sul continuou a ser bombardeado por Israel, o que levou a ONU e outras organizações de ajuda a alertar que nenhum lugar em Gaza é seguro para civis.

Para compreender melhor o risco para os civis no sul de Gaza, a BBC Verify identificou e analisou quatro casos específicos de ataques naquela região.

Também analisamos alguns dos avisos e instruções de evacuação emitidos para os civis de Gaza, incluindo alguns aconselhando-os a se deslocarem para determinadas áreas no sul.

Alguns destes avisos eram acompanhados por mapas com setas apontando para áreas vagamente definidas para onde ir.

Três dos ataques que examinamos atingiram essas áreas ou áreas próximas a elas nos dias seguintes aos alertas.

As forças militares israelenses - as IDF - disseram que se comunicam com os residentes de Gaza de várias maneiras, incluindo entrega de panfletos, postagens em árabe em redes sociais e avisos emitidos por organizações civis e internacionais.

Nesta reportagem, examinamos as instruções das IDF publicadas nas redes sociais e os ataques realizados.

·         Khan Younis - 10 de outubro

Em 10 de outubro, as IDF disseram que seus caças atingiram mais de 200 alvos em Rimal, no norte, e em Khan Younis, no sul, durante a noite.

A BBC examinou um ataque ocorrido naquele dia no centro de Khan Younis para compreender a localização e a dimensão dos danos.

Imagens de vídeo publicadas após o ataque mostram escombros e edifícios desabados no centro da cidade. Verificamos sua localização usando pistas visuais como o minarete da Grande Mesquita de Khan Younis.

Também examinamos fotos que mostram edifícios destruídos e pessoas vasculhando o que resta de carros e casas.

Sabemos que as fotos mostram o mesmo local do vídeo porque a mesma placa de farmácia pode ser vista em ambos. Também usamos pesquisas reversas de imagens para verificar se as fotos não eram de um incidente anterior.

Na manhã de 8 de outubro, o porta-voz das IDF, Avichay Adrae, publicou um aviso no X (antigo Twitter) em árabe, dando instruções aos residentes de várias áreas de Gaza para abandonarem as suas casas e se mudarem para outros locais para sua segurança.

Embora as zonas de evacuação tenham sido em geral claramente delineadas, os destinos para onde os residentes foram orientados foram em geral muito mais vagos.

Neste caso, aqueles que vivem nos bairros de Abasan al-Kabira e Abasan al-Saghira, a poucos quilômetros a sudeste do centro de Khan Younis, foram informados no tweet de 8 de outubro para irem ao "centro da cidade de Khan Younis".

O mapa incluído no vídeo tuitado para quem mora nos dois bairros destaca suas residências atuais e inclui uma seta simplesmente apontando na direção de Khan Younis.

Não é possível descartar a possibilidade de que posteriormente tenham surgido instruções diferentes, mas a BBC não encontrou qualquer prova disso.

·         Rafah - 11 de outubro

A BBC verificou que houve outro ataque no dia seguinte, mais a sul, perto da fronteira com o Egito. Este ataque de 11 de outubro atingiu a Praça Nejmeh, no centro de Rafah.

A BBC analisou um vídeo postado nas redes sociais mostrando a destruição após o ataque. Utilizando as imagens disponíveis da praça antes do ataque, conseguimos identificar a forma dos edifícios como a da praça Nejmeh.

O aviso, emitido em 8 de outubro pelas IDF, também tinha uma instrução para os residentes de Rafah, dizendo para irem imediatamente para o abrigo no centro da cidade de Rafah "para sua segurança".

O mapa do vídeo para quem mora nos bairros de Rafah contém uma seta direcionando os moradores para "Rafah".

A BBC analisou todas as postagens de alerta nas redes sociais das IDF em árabe de que tem conhecimento neste período. Não foi possível encontrar provas de quaisquer instruções diferentes subsequentes, mas isso não elimina a possibilidade de que outras tenham sido emitidas.

·         Khan Younis - 19 de outubro

Oito dias depois, em Khan Younis, houve outro ataque – desta vez na rua Gamal Abdel Nasser.

Verificamos isso observando vídeos dos prédios desabados em uma das principais vias da cidade. Ao combinar o formato dos edifícios do vídeo com os de outras imagens estáticas do mesmo local, pudemos verificar que se tratava do mesmo local.

Imagens adicionais após as explosões mostram corpos de mortos e feridos sendo retirados dos escombros e levados para o hospital Nasser, nas proximidades.

As IDF emitiram um aviso em 16 de outubro para que os residentes da cidade de Gaza se mudassem para o sul, para Khan Younis, se "a sua segurança e a segurança dos seus entes queridos forem importantes para vocês".

Novamente, existe a possibilidade de haver instruções adicionais diferentes, mas não encontramos nenhuma evidência disso.

·         Campos no centro de Gaza - 17, 18 e 25 de outubro

Mais ao norte, na região central de Gaza, existem quatro campos de refugiados.

A BBC verificou ataques a dois deles. Imagens nas redes sociais que mostram as consequências de um ataque ao campo de al-Bureij, em 17 de outubro, mostram grandes destroços, chamas e corpos ensanguentados sendo retirados dos escombros.

Verificamos as imagens comparando os edifícios nestas imagens com fotos tiradas por agências de notícias após os ataques. Também verificamos a localização da filmagem usando uma mesquita visível como referência.

Outro campo próximo, al-Nuseirat, foi atacado no dia seguinte, 18 de outubro.

Verificamos imagens das redes sociais mostrando as consequências, com ambulâncias, detritos, pessoas tentando apagar as chamas e uma padaria destruída.

Nós o localizamos comparando os nomes das lojas que podem ser vistos no vídeo com aqueles vistos nas fotos publicadas antes do ataque.

Apesar do aviso anterior de 8 de outubro instruindo os residentes da área oriental e sul de Maghazi a irem para campos no centro de Gaza, não parece haver quaisquer campos no local especificado no mapa do tuíte.

No entanto, identificamos três campos próximos: al-Nuseirat e al-Bureij, atingidos pelos ataques de 17 e 18 de outubro, e outro campo chamado Deir al-Balah.

Não podemos descartar a possibilidade de que posteriormente tenham havido instruções diferentes, mas a BBC não encontrou qualquer prova disso.

As consequências de outro ataque no campo de al-Nuseirat, em 25 de outubro, foram divulgadas pela TV Al Jazeera.

Imagens postadas online mostram seu principal correspondente em Gaza, Wael al-Dahdouh, chorando no hospital, segurando o corpo de sua filha de sete anos e ajoelhado sobre o corpo de seu filho adolescente. Sua esposa também foi morta.

"Não existe nenhum lugar seguro em Gaza", disse ele em entrevista à Al Jazeera.

Ele disse que sua família se mudou do norte após o alerta de Israel aos residentes para se mudarem para o sul para sua segurança.

·         O que dizem as IDF

A BBC forneceu locais e datas específicos para cada um dos ataques destacados neste artigo para as IDF.

Perguntamos se esses locais foram atingidos pelas forças das IDF e se avisos foram dados antes destes ataques.

Em sua resposta, as IDF disseram que "não podem fornecer mais informações sobre estes locais específicos".

Afirmaram que "apelaram aos civis em Gaza que se deslocassem para o sul para a sua segurança, mas continuarão a atacar alvos terroristas em todas as partes de Gaza".

"De acordo com o direito internacional, as IDF tomam medidas de precaução para evitar danos à população civil. Estas medidas incluem avisos antes dos ataques, nos casos em que seja possível fazê-lo", acrescentaram as IDF.

 

Fonte: BBC News Brasil

 

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