10 mil mortos e torturados: o brutal legado colonial britânico no
Quênia
O rei britânico Charles 3º e sua esposa Camilla
estão em uma visita de Estado de quatro dias ao Quênia com o intuito de
reconhecer "aspectos dolorosos" do passado colonial do Reino Unido.
Em um banquete oficial em Nairóbi, o rei falou
sobre sua “maior tristeza e arrependimento” e que “não havia desculpa pelos
atos de violência abomináveis e injustificáveis cometidos contra os
quenianos" durante a sua luta pela independência.
O rei não fez um pedido formal de desculpas —
decisão que caberia aos ministros do governo.
Em resposta, o presidente do Quênia, William Ruto,
elogiou a coragem do rei ao abordar "verdades desconfortáveis".
O chefe de Estado queniano disse ao rei que o
regime colonial foi "brutal e atroz para o povo africano" e que
"ainda há muito a ser feito para alcançar a reparação completa".
Antes da visita de Estado do rei ao Quênia — a
primeira a um país da Commonwealth (a Comunidade Britânica de Nações) desde o
início de seu reinado — houve especulações sobre um pedido de desculpas por
parte do rei.
No entanto, mesmo sem um pedido formal de
desculpas, o discurso do rei na Câmara Estatal do Quênia representou um
reconhecimento significativo e contundente dos erros cometidos durante o
período colonial.
Neste momento em que o Quênia comemora o seu 60º
aniversário de independência, o rei afirmou à sua audiência:
"É de extrema importância para mim aprofundar
minha própria compreensão desses erros e encontrar alguns daqueles cujas vidas
e comunidades foram tão profundamente afetadas."
Mais de 10 mil pessoas foram mortas e outras
torturadas durante a brutal repressão da revolta Mau Mau na década de 1950, uma
das insurgências mais sangrentas do Império Britânico.
Em 2013, o Reino Unido expressou arrependimento e
pagou 20 milhões de libras (cerca de R$ 144 milhões) a mais de 5 mil pessoas —
mas alguns acham que isso não foi o suficiente.
Uma dessas pessoas é Agnes Muthoni, de 90 anos.
Com passos firmes apesar da idade, ela nos leva ao
local de sepultamento em sua casa em Shamata, no Quênia central.
Ela arranca as ervas daninhas que cresceram ao lado
do túmulo de seu marido. Elijah Kinyua faleceu há dois anos, aos 93 anos. Ele
também era conhecido como General Bahati e, como sua esposa, foi um combatente
durante a violenta revolta contra o governo colonial do Império Britânico na
década de 1950.
Ela tinha a patente de major no Exército da Terra e
Liberdade do Quênia — mais conhecido como Mau Mau.
A senhora Muthoni sorri radiante ao nos mostrar seu
anel de casamento. Eles só se conheceram depois que a revolta terminou e ele
foi libertado da detenção.
"Ele disse que se houvesse mulheres
combatentes sobreviventes, gostaria de se casar com uma delas porque ela
entenderia seus problemas e não o chamaria de Mau Mau."
A luta os uniu. Mas mesmo depois que o Quênia
conquistou a independência do domínio colonial britânico, o casal continuou a
viver às sombras, como muitos ex-combatentes do Mau Mau.
O grupo de resistência permaneceu proibido. Foi
designado como organização terrorista pelo governo colonial e administrações
subsequentes no Quênia independente não revogaram a proibição. "Três
membros do Mau Mau não podiam se encontrar; era um crime", diz o advogado
e político queniano Paul Muite. "Foi atroz."
Somente em 2003 a lei foi alterada e os membros do
Mau Mau finalmente foram reconhecidos como combatentes da liberdade.
Mas isso também significou que as gerações
pós-independência sabiam pouco sobre o passado.
"Tantos filhos e netos não tinham ideia das
raízes do sofrimento do país que deu origem à independência", diz a
historiadora Caroline Elkins, que conduziu entrevistas sobre o assunto na
década de 1990.
Suas observações ecoam nas ruas de Nairóbi hoje.
Muitos jovens mal sabem sobre a detenção e tortura do Mau Mau. Eles estão mais
preocupados com a economia e se perguntam se a visita do rei Charles terá algum
impacto.
O neto da senhora Muthoni, Wachira Githui, de 36
anos, é um dos poucos que ouviu falar disso em primeira mão. Mas ele também
está à vontade com vários dos impactos duradouros do colonialismo na vida
social, política e econômica do Quênia. "Eu falo inglês e tenho orgulho
disso", diz ele, acrescentando que é fã do clube de futebol Chelsea.
As redes sociais quenianas ganham vida quando um
jogo importante da Premier League Inglesa está em andamento.
Das ruas aos escritórios, o legado do império é
inconfundível em Nairóbi.
Um manto preto cuidadosamente passado a ferro com
golas brancas está pendurado atrás da mesa de Paul Muite em seu escritório no
bairro de Kilimani. Ele também usa uma peruca quando comparece ao tribunal, uma
tradição britânica. Muitas das estruturas legais, de governança e educacionais
britânicas foram herdadas não apenas no Quênia, mas em grande parte do antigo
império.
No entanto, o conhecimento de muitos aspectos do
"passado mais doloroso" não foi transmitido de geração em geração e
permanece oculto do público.
Muite está pedindo a criação de uma comissão de
inquérito a ser estabelecida pelos governos do Quênia e do Reino Unido para
percorrer todos os cantos do Quênia e documentar detalhadamente o período colonial.
Ele fez parte da equipe jurídica que levou um caso
de teste aos tribunais britânicos em 2009, que terminou com um acordo quatro
anos depois.
Mas Muite afirma que apenas aqueles combatentes
ainda vivos, que puderam ser examinados por médicos e confirmados como vítimas
de tortura, receberam pagamentos. Aqueles que forneceram serviços e mantiveram
as linhas de suprimento para os combatentes, assim como quenianos fora do
centro do país que lutaram contra o colonialismo, não foram incluídos, diz ele.
Entre eles estão membros do clã Talai, que
recentemente renovaram seus apelos para que o governo britânico devolva o
crânio de seu líder, Koitalel arap Samoei. Ele liderou a resistência da
comunidade Nandi ao assentamento colonial, interrompendo os planos de ocupação
das terras altas do Vale do Rift por mais de uma década. Eventualmente, ele foi
atraído para uma reunião de paz onde foi morto em 1905.
Muite argumenta que reconhecer "aqueles que
foram mortos, aqueles que prestaram serviços, incluindo refeições aos combatentes
do Mau Mau, e aqueles que foram vítimas de estupro, e fornecer-lhes alguma
compensação" ajudaria a trazer um encerramento.
A historiadora Caroline Elkins diz que o anúncio
esperado pelo monarca será "um momento extraordinário", mas
acrescenta que o correto seria "insistir em investigações adequadas,
realizadas pelo governo, para alterar livros de história, modificar museus no
Reino Unido e fornecer financiamento ao Quênia para estabelecer seus próprios
museus e artefatos culturais".
Ela diz que as atrocidades cometidas durante o
estado de emergência - declarado pelo governo colonial em outubro de 1952 em
resposta à revolta Mau Mau - foram feitas em nome da monarca. A Rainha
Elizabeth 2ª ascendeu ao trono apenas oito meses antes, enquanto visitava o
Quênia central, onde a rebelião estava se formando.
"Foi Sua Majestade a Rainha cuja imagem
pendurava nos campos de detenção e, enquanto eram torturados e forçados a
trabalhar, eles tinham que cantar Deus Salve a Rainha."
Os ataques do Mau Mau podiam ser brutais e muitas
vezes ocorriam à noite. Imagens de Michael Ruck, de seis anos, esquartejado
juntamente com seus pais e um ajudante da fazenda, e seus ursinhos de pelúcia
ensanguentados, foram publicadas em jornais no exterior e não despertaram
simpatia pelos combatentes.
O governo colonial usou sua força aérea e forças
terrestres, incluindo muitos quenianos - conhecidos como guardas locais - para
realizar uma repressão brutal contra o Mau Mau.
Elkins estima que até 320 mil pessoas foram
internadas em campos de detenção ou concentração. Relatos indicam que
prisioneiros foram castrados, açoitados até a morte e até mesmo incendiados.
Mais de mil pessoas foram executadas por
enforcamento durante o período de emergência. O número total de mortes é
estimado em milhares. Historiadores descreveram as operações para sufocar a
revolta como o conflito pós-guerra mais sangrento em que o Reino Unido esteve
envolvido no último século.
"Não tínhamos casas para morar", diz a
veterana Agnes Muthoni sobre as condições na floresta durante o período de
emergência. "Havia hienas, fome e chuva."
Hoje, ela vive em uma casa de telhado azul feita de
chapas de ferro onduladas e madeira, que se sobressai sobre as colinas verdes
ondulantes da cordilheira de Aberdare.
A vasta e fértil terra que se estende pelo Quênia
central até o Vale do Rift era conhecida como as "Terras Altas
Brancas". Quase toda ela era exclusivamente de propriedade de fazendeiros
colonos. Os habitantes locais, como a senhora Muthoni, foram empurrados para as
margens para abrir caminho para que fazendeiros europeus ocupassem as melhores
terras.
Após a independência, grande parte dessas terras
foi para os guardas locais, já que o Mau Mau continuava a ser considerado uma
organização terrorista.
Mas a senhora Muthoni está pronta para deixar o
passado para trás. "Não guardamos ressentimentos em nossos corações,
porque o passado já se foi", diz ela. "Os seres humanos se perdoam e
continuam a viver juntos, mas eu gostaria de receber terras."
Ø Alemanha pede perdão por crimes coloniais na Tanzânia
O presidente da Alemanha, Frank-Walter Steinmeier,
pediu perdão nesta quarta-feira (01/11) pelos crimes e massacres cometidos na
Tanzânia durante o domínio colonial alemão.
“Gostaria de pedir perdão pelo que os alemães
fizeram com seus ancestrais aqui”, disse Steinmeier durante uma visita ao Museu
Maji Maji, na cidade de Songea, no sul da Tanzânia. “Quero assegurar-lhes que
nós, alemães, buscaremos com vocês respostas para as perguntas não respondidas
que não lhes dão paz”.
A parte continental da Tanzânia fazia parte da
antiga África Oriental Alemã, colônia no leste do continente africano que foi
criada nos anos 1880 e dissolvida durante a Primeira Guerra Mundial, quando foi
tomada for forças do Reino Unido.
Nesse período, entre o fim do Século 19 e o início
do Século 20, a Alemanha manteve várias colônias, incluindo territórios na
atual Tanzânia, Burundi, Ruanda, Namíbia, Camarões, Togo e Gana.
Em 2021, Berlim reconheceu oficialmente ter
cometido genocídio durante a colonização da Namíbia, anunciando uma compensação
financeira para reparar os crimes.
·
‘História compartilhada’
Especialistas estimam que entre 200 mil e 300 mil
indígenas da Tanzânia foram assassinados durante os chamados levantes da
Rebelião Maji Maji entre 1905 e 1907.
Considerada uma das revoltas mais sangrentas da
história colonial, as tropas alemãs participaram da destruição sistemática de
campos e vilarejos locais.
Falando sobre a “vergonha” sentida em relação aos
massacres, Steinmeier disse que a Alemanha está pronta para cooperar com a
Tanzânia em um “processamento comunitário” do passado.
O presidente prometeu ainda compartilhar as
histórias que aprendeu no Museu Maji Maji com o povo alemão. “O que aconteceu
aqui é nossa história compartilhada – a história de seus ancestrais e a
história de nossos ancestrais na Alemanha”, disse.
Na terça-feira, no segundo dia da viagem de três
dias de Steinmeier à Tanzânia, ele afirmou que a Alemanha consideraria “a
repatriação de propriedade cultural e restos humanos”.
·
Governada por uma mulher
Agora, Alemanha e Tanzânia dizem que pretendem
fortalecer suas relações. A presidente tanzaniana, Samia Suluhu Hassan, de 63
anos, é a única mulher chefe de Estado com poderes executivos no continente
africano atualmente.
Suluhu reverteu muitas das políticas de seu
antecessor, inclusive a proibição de manifestações, restaurando as licenças dos
jornais e libertando os líderes da oposição presos.
A Anistia Internacional, no entanto, ainda observa
que há muitas deficiências de direitos humanos no país, incluindo limitações à
imprensa e à liberdade de reunião.
A Tanzânia tem uma das economias mais fortes da
África Subsaariana e espera-se que atinja uma taxa de crescimento econômico de
4,9% neste ano, maior do que a prevista para a Alemanha.
Fonte: Por Anne Soy. correspondente sênior da BBC da
África/Deutsche Welle
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