Em 10 anos, aplicação da Lei Anticorrupção foi além da Lava Jato
Lei sancionada por Dilma mudou paradigma do combate
à corrupção ao focar nas empresas e criar estímulos de "compliance".
Saldo inicial é positivo, mas juristas alertam: ainda há muito por fazer.No
rescaldo das Jornadas de Junho e sob intensa pressão popular por ética no trato
da coisa pública, a então presidente, Dilma Rousseff, sancionava, há exatos dez
anos, a Lei Anticorrupção. A norma mudou o paradigma do combate à corrupção no
país ao punir no bolso as empresas que pagassem propina e ao criar estímulos
para elas mesmas adotarem mecanismos de controle interno e colaborar com o
governo ao admitirem irregularidades.
Até então, as leis brasileiras sobre o tema eram
mais focadas na punição dos corrompidos, e os incentivos para que as empresas
adotassem estruturas de conformidade, mais conhecidas pelo termo em inglês
compliance, engatinhavam - o que fazia o Brasil destoar da prática dos países
da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
O que os movimentos por ética empresarial que
participaram da elaboração da norma não previam era que, menos de um ano depois
da sanção, um furacão jurídico-político chamado Operação Lava Jato atrairia
para si o grosso do debate e da prática de combate à corrupção no país -
trazendo, a reboque, a recém-nascida lei, que seria regulamentada apenas em
2015.
Como resultado, um dos eixos da nova norma - a
possibilidade de as empresas admitirem o malfeito e colaborarem com o governo
em troca de redução das penalidades, por meio dos acordos de leniência -
tornou-se também um dos eixos da Lava Jato. Isso ocorreu apesar de a lei não
prever explicitamente que o Ministério Público (MP) fosse competente para
conduzir esse tipo de acordo.
A Lei Anticorrupção não pune criminalmente as
empresas, mas administrativa e civilmente, com multas, proibição de participar
de licitações e obrigação de reparar o dano, por exemplo.
• Aplicação
intensa pela empresas
O efeito da Lava Jato na aplicação da lei faz com
que alguns especialistas separem a história da Lei Anticorrupção em dois
momentos. Os primeiros cinco anos, sob efeito da força-tarefa de Curitiba, são
marcados por casos envolvendo grandes empresas e por grandes dúvidas sobre quem
seria competente para aplicar os acordos de leniência.
O segundo momento caracteriza-se por uma maior
experiência dos órgãos responsáveis e por casos menos midiáticos e se beneficia
de um acordo de 2020 que busca ampliar a coordenação na aplicação da lei,
assinado por Supremo Tribunal Federal, Controladoria-Geral da União (CGU),
Advocacia-Geral da União, Tribunal de Contas da União e Ministério da Justiça -
com a notável ausência do Ministério Público Federal.
Disputas sobre competências à parte, é fato que o
percentual de empresas no Brasil com órgãos e políticas internas de
conformidade cresceu desde que a lei entrou em vigor. Uma pesquisa feita pela
consultoria Deloitte mostra que, no período de 2016 a 2018, 40% de uma amostra
de 116 empresas adotavam diretrizes da Lei Anticorrupção. Em 2022, o percentual
era de 70%. A adoção desses parâmetros pode beneficiá-las com redução de multas
futuras se forem pegas em casos de corrupção.
Foi também a partir da Lei Anticorrupção que a
chamada indústria do compliance decolou no país, ampliando as oportunidades de
negócio para consultorias e fortalecendo carreiras então pouco conhecidas, como
a de compliance officer.
"Independente do juízo se [a atuação do MP] é
legal ou não, a lei teve uma aplicação intensa nesses dez anos, e as empresas
entenderam a importância de desenvolver mecanismos de integridade privada e
compliance", afirma à DW Vinícius de Carvalho, ministro da Controladoria
Geral da União (CGU), órgão responsável pela aplicação da lei no âmbito do
governo federal. "Isso não significa que não haja necessidade de
aprimoramentos nos próximos anos."
• Quem
celebra o acordo de leniência?
O problema mais conhecido da lei até hoje é o
debate sobre se o Ministério Público pode ou não celebrar acordos de leniência.
A professora Raquel de Mattos Pimenta, da FGV Direito SP e especialista em
políticas anticorrupção, afirma que a norma não dá competência explícita ao
Ministério Público para responsabilização administrativa e civil.
"Ela silencia sobre o Ministério Público, o
que nos faz imaginar que a principal competência para aplicar essa lei é da
autoridade máxima de cada órgão ou entidade pública. No âmbito do Executivo
federal, com uma concentração na CGU", afirma.
Na época da Lava Jato, diz Pimenta, havia uma
"superabilitação" do MP que levou a um processo de construção de sua
competência para fazer esses acordos, reconhecido pelas empresas que os
assinaram. Isso consolidou a legitimidade dos procuradores da República para
negociar a leniência com as empresas, da mesma forma como fazem nos casos de
colaboração premiada com pessoas físicas na esfera criminal.
Até hoje, o Supremo não se manifestou sobre se o MP
pode ou não firmar acordos de leniência. Há uma ação na corte proposta pelos
partidos PSOL, PCdoB e Solidariedade questionando os acordos de leniência
assinados pelo MP no âmbito da Lava Jato até 2020. Na última quarta-feira, o relator,
ministro André Mendonça, decidiu que a ação será julgada diretamente pelo
plenário, sem análise de liminar.
A 5ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério
Público Federal, sobre combate à corrupção, argumenta que a Lei Anticorrupção e
a Lei das Organizações Criminosas - que regulamenta as colaborações premiadas e
também foi sancionada por Dilma em agosto de 2013 - fazem parte de um
"microssistema sancionatório" no qual o Ministério Público é
legitimado a atuar, e que a leniência é "antes de mais nada, instrumento
de investigação".
O diretor-presidente do Instituto Ethos, Caio
Magri, que participou dos debates para a criação da lei, é crítico ao efeito da
Lava Jato na aplicação da lei. "A lei foi aprovada num impulso muito
positivo de mobilização e visão das questões centrais para prevenir e combater
a corrupção. A perspectiva que vem depois é moralista e punitivista. Curitiba e
o Ministério Público atacaram a lei de forma muito forte, especialmente na
dosagem [das penalidades], impactando nas empresas de maneira trágica",
diz.
Carvalho, ministro da CGU, afirma que seu papel é
trabalhar com o MP "da melhor forma possível", e que a CGU vem
dialogando com a 5ª Câmara de Coordenação e Revisão com o objetivo de
"alinhar procedimentos e metodologias" para que as empresas
"saibam quais são nossos critérios de análise de provas e como avaliamos
os acordos".
• E
daqui para frente?
Além da questão da competência para os acordos de
leniência, há debates entre os especialistas sobre como ligar a responsabilização
das pessoas físicas à das pessoas jurídicas em casos de corrupção - o que não
está previsto na lei -, sobre quais informações a empresa deve compartilhar em
acordos de leniência e sobre qual deve ser a punição adequada, que faça valer a
lei, mas evite que as empresas quebrem, levando consigo empregos e estruturas
produtivas.
Não há, no Congresso ou no governo federal, um
debate sobre reformar a Lei Anticorrupção. E isso nem seria o ideal neste
momento, avalia Pimenta, da FGV Direito SP. Ela aponta que a aplicação da
norma, ainda recente, poderia ser aperfeiçoada por reformas incrementais entre
os órgãos, como a CGU e o MP.
"Quanto mais os órgãos forem claros sobre o
que esperam da responsabilidade das pessoas jurídicas, melhores e mais
atraentes esses instrumentos se tornam. Essa é a experiência internacional - o
Departamento de Justiça dos EUA, principal exemplo de punição de atos de
corrupção, solta guias dizendo o que espera da colaboração de empresas e
pessoas físicas", diz.
Ela também ressalta a importância de os órgãos de
fiscalização aprimorarem sua capacidade de investigação de irregularidades e de
responsabilização das empresas - porque, sem medo de serem pegas, a tendência é
de elas reduzirem os gastos com conformidade. "Tivemos a explosão da indústria
do compliance, e agora estamos num momento de sofisticação, mas esse movimento
só vai continuar se valer a pena para a empresa gastar esse dinheiro, porque
compliance e integridade são caros", diz. "As empresas não fazem isso
apenas porque isso se alinha aos propósitos delas - pode até se alinhar, mas
isso traz benefícios se elas forem eventualmente responsabilizadas."
Carvalho, da CGU, tem avaliação semelhante. Ele diz
que a Lei Anticorrupção só terá eficácia duradoura se o governo aprimorar sua
capacidade de detecção de ilícitos, algo que ele afirma estar trabalhando para
fazer. Carvalho presidiu o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade)
de 2012 a 2016 - órgão que trouxe os acordos de leniência para a prática
jurídica brasileira, mas no contexto de combate aos cartéis, e não no de danos
à administração pública.
"Quando se fala em impunidade, as pessoas em
geral pensam em aumento de pena. Mas há um elemento muito relevante que diz
respeito à capacidade de detecção do ilícito. Se você não gera novos casos e
investigações, o acordo de leniência deixa de ser atrativo, pois uma das coisas
que gera essa atratividade é a preocupação da empresa em ser
identificada", afirma.
Magri, do Instituto Ethos, expressa preocupação com
o outro lado dessa relação: a sobrevivência das empresas flagradas, não pelo
bem de seus controladores, mas pela riqueza que geram à sociedade. Ele defende
que o debate sobre os dez anos da lei estimule os órgãos responsáveis a
buscarem um equilíbrio que permita às empresas punidas seguirem funcionando,
mas com estruturas melhoradas e empregos preservados. "Prefiro chamar essa
norma de Lei da Empresa Limpa", diz.
10
anos de Lei Anticorrupção: O que temos a comemorar?
1º de agosto de 2023, a Lei 12.846/2013 (também
conhecida como Lei Anticorrupção) completou 10 anos de vida desde a sua sanção.
O objetivo foi suprir uma lacuna legal no Brasil em
relação às diretrizes estabelecidas pelo movimento internacional de combate à
corrupção – cujo turning point foi a celebração da Convenção da OCDE em 1997, à
qual o Brasil aderiu em 2001. É bem verdade que, a partir da Lei de Práticas de
Corrupção no Exterior (1977) nos Estados Unidos, muitas transformações ligadas
ao tema já estavam em marcha no mundo por influência do episódio de Watergate.
Passados exatos 10 anos desde a promulgação da lei,
muita coisa já mudou no cenário corporativo brasileiro com o advento da
responsabilização objetiva de pessoas jurídicas de direito privado envolvidas
em fraudes e atos de corrupção. Mas não se faz uma revolução em 10 anos. É
preciso avançar muito mais – até porque mudanças culturais se cristalizam ao
longo de gerações.
Do ponto de vista da prevenção, a implementação de
programas de integridade cada vez mais robustos reafirma que inúmeras empresas
dos mais variados setores deixaram de fazer negócios a qualquer custo, já que
os prejuízos experimentados com a aplicação da Lei 12.846 trouxeram
consequências.
Mesmo assim, não se pode dizer ainda que a
mentalidade de compliance está incorporada no DNA de negócios das empresas. As
multinacionais já tinham preocupações nesse sentido muito antes de 2013, mas a
questão era novidade para muitas empresas brasileiras de médio e pequeno porte,
e mesmo as grandes.
Além das multas pesadas e demais sanções que podem
colocar a própria existência da empresa em risco, nos últimos anos o mundo
corporativo abraçou a agenda ESG de olho na governança das corporações e sua
reputação enquanto atores sociais. A lei foi o marco regulatório do compliance
no Brasil e, além disso, muitas empresas optaram por investir nessa área como
opção de planejamento estratégico para prevenir fraudes e assim proteger a
imagem da empresa.
Se no âmbito privado houve avanços, na esfera
pública e no terceiro setor não se pode afirmar o mesmo quanto à aplicação da
Lei Anticorrupção. Nenhum partido político, por exemplo, faz sua aplicação – o
que evidencia o longo caminho que ainda temos pela frente.
O instituto jurídico do acordo de leniência,
igualmente trazido pela Lei 12.846 para o âmbito da corrupção, foi inspirado na
disciplina jurídica do direito concorrencial. No entanto, apresenta falha de
arquitetura legal por não exigir a intervenção do Ministério Público nos
acordos de leniência, trazendo insegurança jurídica.
Se esse dispositivo estivesse previsto na lei, após
a celebração de eventuais acordos, o MP poderia considerá-los lesivos ao
interesse público e questioná-los em juízo, levando-os à invalidação. Isso
evidencia a pouca serventia da estrutura sem o MP.
Infelizmente, apesar de sermos subscritores do
Pacto dos Governos Abertos (2011) ao lado de 7 outras nações, o Brasil não
possui uma política pública anticorrupção. Além disso, algumas normas – como a
Lei da Improbidade Administrativa e a Lei da Ficha Limpa – acabaram
desmanteladas por alterações impostas pelo próprio Congresso Nacional. A
regulação do lobby avançou de forma imprópria na Câmara e influenciou na
aprovação de vários pontos que precisam ser revistos no Senado. Um exemplo são
as hospitalidades sem limites, oferecidas por entes particulares a agentes
públicos, verdadeira modalidade de corrupção legalizada.
O Inac (Instituto Não Aceito Corrupção) é amicus
curiae na Ação Direta de inconstitucionalidade promovida pela Confederação
Nacional dos Servidores e Funcionários Públicos das Fundações, Autarquias e
Prefeituras Municipais contra diversas cláusulas da Lei 14.230/2021, que
alterou com intensa profundidade a Lei 8.429/1992 (Lei da Improbidade
Administrativa) em favor de corruptos e corruptores.
Da mesma forma, o Inac intervém na ADPF 1051, onde
3 partidos políticos tentam invalidar acordos de leniência corretamente
homologados pelo STF. O Inac sustenta o descabimento da ação, que implodiria
nossa segurança jurídica e não foi referendada sequer pelas empresas que
celebraram os acordos – já que a convenção da OCDE não admite eximir casos de
corrupção sob o argumento de dano à economia, como se pretende.
As alterações implantadas pela Lei 14.230/2021
praticamente impõem, de forma inconstitucional, nova redação à proposta inicial
da Lei da Improbidade, tornando-a inócua. O Inac luta a cada dia para combater
a corrupção com inteligência e criar no país uma inédita política pública
anticorrupção dentro do caráter democrático e dos princípios republicanos.
Esses 10 anos de vigência da Lei Anticorrupção
deixam um legado de início do processo de sedimentação do compliance no âmbito
privado e a perspectiva de que há muito a se fazer ainda. É apenas o começo. Em
relação a partidos políticos, clubes de futebol e esfera pública, há quase tudo
por ser construído. Portanto, a lei foi apenas o pontapé inicial de um jogo que
só está começando.
Fonte: Deutsche Welle/Poder 360
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