Arsenal jurídico contra ditadura no Estado Novo lembra enfrentamento a
Bolsonaro, diz autor de livro
É sempre difícil comparar eventos políticos e
jurídicos distantes no tempo, mas, com algumas ressalvas e muita pesquisa, o
advogado Antonio Pedro Melchior decidiu correr o risco no recém-lançado
"Juristas em Resistência".
Fruto de sua tese de doutorado, o livro trata de
figuras centrais na oposição à ditadura do Estado Novo (1937-1945), quando se
aprovaram as duas leis criminais mais importantes do país: o Código Penal
(1940) e o Código de Processo Penal (1941), ambos ainda em vigor.
Ao analisar de que maneira aquela escalada
autoritária se legitimou por meio da máquina jurídica, Melchior aponta
semelhanças com a ditadura militar (1964-1985) e com a Operação Lava Jato,
embora a comparação esteja longe de ser o tema principal do trabalho.
"O que permanece [do momento em que se criaram
os códigos] é toda a mentalidade que tende a desvalorizar o papel da defesa,
que tende a fragilizar as garantias fundamentais em nome de um interesse
público de combate ao crime", diz em entrevista à reportagem.
O foco de Melchior, contudo, não está no movimento
antiliberal em si, mas no seu oposto; ele põe a lente sobre os advogados que,
de diversas maneiras, tentaram resistir ao avanço do arbítrio. Exemplos que, na
visão dele, foram valiosos durante o governo de Jair Bolsonaro (PL).
"Na minha concepção, o conjunto de recursos
colocados em prática para enfrentar a ditadura no Estado Novo também foi
colocado em prática, de certa maneira, para enfrentar o recrudescimento
autoritário no governo Bolsonaro. E, quando a gente sabe mais sobre os
instrumentos de luta, a gente luta melhor", afirma.
LEIA A ENTREVISTA:
• Em
seu doutorado, o sr. estudou juristas que resistiram à ditadura do Estado Novo,
quase um século atrás. É possível falar em um legado que eles deixaram para as
gerações posteriores?
ANTONIO PEDRO MELCHIOR - Todos esses juristas estão
unidos por práticas e ideias que levam ao fortalecimento das liberdades
democráticas, pela defesa das garantias fundamentais e pela crítica ao poder do
Estado. Eu diria que a principal herança deles é falar da necessidade de um
plano de ação que permita furar um caminho autoritário.
Quando eu estava fazendo a tese, havia exemplos
muito vivos de uma resistência se constituindo para enfrentar um presidente
[Jair Bolsonaro] que diz amar torturador.
Havia o lava-jatismo, a perseguição a juízes que se
manifestaram contra o impeachment de Dilma [Rousseff], a morte de Cancellier
[Luiz Carlos Cancellier, reitor da Universidade Federal de Santa Catarina que
se matou durante investigações da Polícia Federal], um plano parlamentar de
recrudescimento autoritário.
Na minha concepção, o conjunto de recursos
colocados em prática para enfrentar a ditadura no Estado Novo também foi
colocado em prática, de certa maneira, para enfrentar o recrudescimento
autoritário no governo Bolsonaro. E, quando a gente sabe mais sobre os
instrumentos de luta, a gente luta melhor.
Por exemplo, em 1935, Hermes Lima, em
"Problemas do Nosso Tempo", criticava o integralismo [movimento
conservador] e o lema "Deus, pátria e família" –um lema que anima
setores conservadores em 2018, 2019. Ou seja, a luta contra o fascismo que
brotava em 1935 estava presente quando esse livro foi escrito.
• O sr.
explora bastante a relação entre o Estado Novo e as duas principais leis do
direito criminal brasileiro: o Código Penal e o Código de Processo Penal. Como
a mentalidade autoritária influenciou essa legislação?
APM - A consolidação jurídica do Estado autoritário
por meio da reestruturação do Código de Processo Penal e do Código Penal foi
uma diretriz do Francisco Campos [ministro da Justiça do Estado Novo]. Ele
elabora e expressamente introduz essa orientação no debate jurídico nacional.
Para ele, o Brasil deveria constituir um Estado
forte e antiliberal, e é com essa visão que ele criou o gabinete para produzir
a legislação do Estado Novo. Isso vem num contínuo desde 1934, com Vicente Rao
[ministro da Justiça de 1934 a 1937], depois com a Lei de Segurança Nacional
[de 1935].
Eles forneceram instrumentos intelectuais para um
tipo de processo baseado em uma doutrina na qual os direitos individuais são
submetidos à lógica de salvação do Estado.
• A
ideia de salvação nacional naquela época era muito alimentada pela retórica
anticomunista. Isso aparece nessas leis?
APM - O Código de Processo Penal é um subsistema
processual da repressão política. E é importante destacar esse discurso do
autoritarismo brasileiro que apela ao catastrofismo. Pega-se uma situação de
convulsão social, algo que realmente exista na sociedade –o anticomunismo ou o
imaginário anticomunista—, e eleva-se aquilo a uma potência que passa a
justificar práticas de exceção. Isso se fez presente em toda a estrutura do
código.
Por exemplo, há uma grande concentração de poderes
na mão do juiz, as nulidades passam a ser percebidas como algo deficiente à
energia repressiva do Estado, dá-se baixa relevância aos direitos de defesa.
• Considerando
algumas dessas características, o sr. faz comparações entre julgamentos no
Estado Novo, na ditadura militar e na Operação Lava Jato. Em que sentido são de
fato comparáveis?
APM - A gente sempre tem que tomar muito cuidado ao
colocar numa mesma mesa eventos políticos e jurídicos tão distanciados. Mas o
que eu pretendi fazer foi identificar uma engrenagem dos julgamentos orientados
politicamente.
Eu pude perceber uma ampla margem de flexibilidade
dos que detêm o poder para identificar um comportamento dissidente, uma conduta
definida como atentatória aos interesses do Estado.
Além disso, são julgamentos baseados em uma
política de confissão. No Estado Novo e na ditadura civil-militar, a tortura
era justamente para isso. E era um processo que se despachava muito
rapidamente, ou seja, um semblante de julgamento.
Eu diria ainda que a Lava Jato é também um
movimento em que se acredita que homens bons poderiam salvar a sociedade
brasileira da corrupção, por meio de atos até mesmo contrários à lei –nesse
sentido, tem também um apelo salvacionista autoritário.
• O
discurso anticorrupção substitui a retórica anticomunista?
APM - O discurso anticorrupção entra nessa
estrutura narrativa muito comum do autoritarismo brasileiro. Ele vem em uma
retórica salvacionista, de que, para enfrentar um perigo iminente, para
enfrentar todo esse sistema carcomido, medidas excepcionais passam a ser
necessárias.
• Quanto
dessa mentalidade autoritária que permeou a criação dos dois códigos sobrevive
até hoje?
APM - O sistema de Justiça penal é constituído a
partir de uma tradição inquisitorial de 800 anos. É uma estrutura que confunde
a atuação do juiz com a do promotor.
O que permanece é toda a mentalidade que tende a
desvalorizar o papel da defesa, que tende a fragilizar as garantias
fundamentais em nome de um interesse público de combate ao crime. Veja a
dificuldade do debate em torno do juiz das garantias, a resistência da elite
judiciária a um modelo de maior controle das decisões judiciais.
• Por
que o Brasil nunca fez uma reforma profunda dessa legislação penal?
APM - A minha hipótese é que o Brasil tem
dificuldade, pela sua própria formação institucional, de produzir rupturas
estruturais. É uma sociedade formada sobre a base do consenso entre as elites.
A gente tem optado por reformas muito parciais. A
gente não tem o mesmo código da década de 1940, idêntico. Só que as reformas,
mesmo quando elas pretendem reforçar a liberdade, terminam sendo cooptadas pela
mentalidade autoritária dos juízes.
As medidas cautelares, por exemplo. Em 2011, foi
aprovada uma lei sobre medidas alternativas à prisão. O efeito foi que não
apenas aumentou a quantidade de presos preventivos, como também muita gente que
não tinha medida alternativa decretada passa a ter.
O
“nazifascismo” do PT é o “comunismo” de Bolsonaro. Por Mario Sabino
Não surpreende o “pacote da democracia” que o
ministro da Justiça, Flávio Dino, vai enviar para aprovação no Congresso, sob
aplausos do PT. Não surpreende sua justificativa, igualmente.
Flávio Dino afirmou que endurecer as penas contra o
Estado Democrático de Direito é uma luta maior. “Sustento projetos de lei,
decisões judiciais ou investigações da Polícia Federal que sejam coerentes com
essa atitude de combate ao perigosíssimo nazifascismo do século 21, que mata
crianças em escolas, destrói o prédio do Supremo e se acha autorizado a agredir
pessoas por questões políticas”, disse o ministro de Justiça, acrescentando o
seguinte: “Quem minimizou os riscos antidemocráticos, há 100 anos atrás na
Alemanha ou na Itália, alimentou um monstro. Busco não pecar por omissão”.
O pacote prevê que aqueles que atentarem contra a
vida dos presidentes dos Três Poderes, do vice-presidente da República, de
ministros do STF e do procurador-geral da República poderão pegar de 20 a 40
anos de cana. Quem liderar movimentos antidemocráticos? Doze anos atrás das
grades. Financiadores de movimentos antidemocráticos? De 8 a 20 anos vendo o sol
nascer quadrado.
A minha primeira reação foi dizer que o governo
Lula, por meio do incansável Flávio Dino, quer instituir formalmente valores
diferentes para a vida humana no Brasil, a depender do cargo que ela ocupa. E
me perguntei: por que não também pela renda? Como, na prática, vida de rico já
vale mais do que vida de pobre, seria só uma questão de formalizar a coisa.
A minha segunda reação foi pensar como os
perpetradores do terrorismo tabajara de 8 de janeiro, que precisa ser punido
dentro do ordenamento jurídico já vigente (e as autoridades que foram lenientes
também deveriam sê-lo), abriram uma comporta gigante para que o PT e os seus
associados dessem vazão aos seus instintos liberticidas.
O “pacote da democracia” de Flávio Dino é, na
verdade, uma reedição petista da Lei de Segurança Nacional, substituída, em
2021, pela Lei de Proteção ao Estado Democrático de Direito, que nada tem a ver
com proteção da honra ou da integridade física de quem quer que seja. E por um
motivo cristalino: a sobreposição de pessoa e cargo dá margem para que a
subjetividade se instaure de maneira absoluta na interpretação de lei.
A justificativa de que o Brasil se encontra
ameaçado por um “perigosíssimo nazifascismo do século XXI” chega a ser burlesca
— e ela fica ainda mais risível quando vinda da boca do ministro da Justiça de
um governo que faz vista grossa para os crimes do regime de Vladimir Putin,
cuja milícia Wagner foi fundada por um neonazista, e que ainda dá mão ao
ditador russo em fóruns internacionais.
A “ameaça nazifascista” do discurso do PT é a mesma
patacoada da “ameaça comunista” do discurso de Jair Bolsonaro. A estratégia é
inculcar nos ingênuos, até com linguagem fascista, como fez Lula, veja só, a
ideia de que existe um poderoso inimigo interno no Brasil, na falta de inimigo
externo ao país, a fim de aumentar a capacidade repressiva do Estado. O
objetivo é o de manter-se ou até perpetuar-se no poder (louco devaneio), por
meio da neutralização dos adversários ideológicos ou daqueles que simplesmente
querem fiscalizar a casta governativa. Essa gente aí é que ameaça a democracia.
O “pacote da democracia” de Flávio Dino é uma tijolada autoritária. Rio para
não chorar.
Fonte: FolhaPress/Metrópoles
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