quarta-feira, 3 de maio de 2023

Violência na terra Yanomami novamente põe em xeque as Forças Armadas

Dois episódios de violência na Terra Indígena Yanomami no final de semana demonstraram a resistência armada de garimpeiros no território em aberto desafio às forças públicas e ao estado democrático de direito. Infelizmente um Yanomami, agente comunitário de saúde, foi assassinado por garimpeiros e outros quatro mineradores foram mortos por agentes da PRF e do Ibama em tiroteios distintos no sábado (29) e no domingo (30) – todas as mortes devem ser lamentadas, inclusive dos invasores. Outros dois Yanomami, feridos a bala pelos garimpeiros, passaram por atendimento de emergência no hospital de Boa Vista. Ao fim dos primeiros 90 dias do decreto presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva que determinou a retirada dos invasores e o socorro aos Yanomami, a sensação é de que a hora da verdade chegou para a ação de expulsão dos intrusos.

Em especial para os militares. Eles detêm, a partir do dinheiro público proveniente dos impostos pagos por todos os cidadãos, os meios de transporte, os armamentos e o pessoal para fazer cumprir a ordem presidencial. Têm aviões, helicópteros, barcos, lanchas, aparelhos de comunicação, milhares de soldados e oficiais, tudo entregue a eles pelos civis para que desempenhem suas funções. Deveriam vir a público para explicar, mas não vão, por que essa imensidão de recursos não está sendo usada com toda força e eficiência a fim de completar a expulsão dos invasores.

Quem acompanha as reportagens veiculadas pela Agência Pública sobre a crise humanitária na Terra Indígena Yanomami e leu esta newsletter do final de fevereiro sabe as dúvidas que pairam sobre o papel crucial que as Forças Armadas deveriam desempenhar na desintrusão do território. Em fevereiro, já havíamos alertado que os militares “pouco faziam” para a retirada dos garimpeiros. Não criaram bases temporárias de ocupação do território. Mudaram duas vezes a data limite para o fechamento do espaço aéreo, gerando desinformação e demonstrando hesitação. Em março, o Ministério da Defesa se recusou a corrigir 46 pistas de pouso que a presidente da Funai, Joênia Wapichana, apontou como prioritárias tanto para o socorro sanitário quanto à própria operação de desintrusão.

O comandante do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas, vinculado ao Ministério da Defesa, o almirante de esquadra Renato Rodrigues de Aguiar Freire, na ocasião respondeu à Joênia por escrito que o assunto deveria ser resolvido por outro órgão público. Chamou de “consulta” o pedido urgente da Funai. Em síntese, mandou a Funai passear. Há ainda diversas reclamações contra os militares a respeito de demora e falhas na distribuição de cestas básicas.

Como dito algumas vezes pelos servidores públicos dos órgãos mais diretamente envolvidos na operação de desintrusão – a saber, Ibama, Funai, Polícia Federal, Força Nacional e Polícia Rodoviária Federal –, a participação dos militares precisa ser definitiva.

“Hoje as principais dificuldades no combate aos garimpos ilegais são o transporte aéreo e o efetivo controle do tráfego de aviões do garimpo. Isso foi explicado com todas as letras à Pública pelo diretor de Amazônia e Meio Ambiente da Polícia Federal, Humberto Freire de Barros, no início de abril. O delegado disse que “tem demandado ao Ministério da Defesa que efetivamente haja esse controle [do espaço aéreo] e que efetivamente seja estancada a logística aérea para dentro da terra Yanomami, só sendo permitida aquelas autorizadas pela própria Força Aérea”.
Os tiroteios recentes na terra Yanomami colocam a nu as Forças Armadas. A ordem do presidente da República dirigida indiretamente aos generais, almirantes e brigadeiros aguarda cumprimento. No domingo, uma equipe do Ibama e da PRF foi recebida a tiros assim que chegou, de helicóptero, a um garimpo na região de Waikás. É a sexta vez que isso ocorre no território. A Pública revelou o ataque anterior mais sério, em 14 de março, quando um helicóptero do Ibama foi alvejado.

Onde estão os militares enquanto garimpeiros disparam contra fiscais em pleno exercício das suas funções? Nesta segunda-feira (1) descobriu-se que um dos mortos na operação de domingo, Sandro Moraes de Carvalho, era conhecido como integrante de uma facção criminosa e foragido da Justiça do Amapá sob acusação de roubo qualificado. Ele aparece em vídeos e fotos ostentando e usando diversas armas, incluindo um fuzil. Só essas informações dão a medida dos riscos enfrentados pelos servidores civis que atuam no território Yanomami.

Em todos os casos anteriores, ficou evidente que o número mobilizado de profissionais do Ibama e da PRF para a fiscalização não impressionou os garimpeiros. São órgãos infinitamente menores do que o Exército, a Marinha e a Aeronáutica. Uma das regras básicas nas operações de desintrusão é que o Estado apareça com um peso tão grande, em termos de agentes e equipamentos, que desestimule imediatamente qualquer reação armada. É exercer o poder de dissuasão. Os militares estufam o peito quando falam sobre esse conceito, e com base nisso vão às compras todos os anos. Os Yanomami e os servidores federais civis querem saber onde estão esses equipamentos. Se não servem para defender um território que faz uma extensa fronteira seca com a Venezuela, para quê serviriam?

É verdade que os militares têm apoiado ações da Polícia Federal. Mas elas também têm sido pontuais e não abarcam todas as necessidades da desintrusão. Uma força militar permanente de acompanhamento, com toda a logística possível, deveria ser adotada a cada saída de cada fiscalização, seja do Ibama, seja da PF – isso para ficar no aspecto mais simples.

Em entrevista coletiva nesta segunda-feira (1) em Boa Vista (RR), a ministra Sonia Guajajara (Povos Indígenas) de novo pediu que os garimpeiros saiam de forma pacífica e voluntária do território indígena e a ministra Marina Silva (Meio Ambiente) prometeu que o governo vai “intensificar as ações”. Novamente caberá às Forças Armadas demonstrar o quão rápido querem – ou se querem – mudar o cenário na terra Yanomami.

 

Ø  Governo federal inicia operação para retirar 1.600 invasores de terra indígena no Pará

 

Sem providência há quase 10 anos, ordem judicial para a retirada de invasores da Terra Indígena Alto Rio Guamá, no Pará, começa a ser cumprida pelo governo federal por meio de uma grande operação que envolve diversos órgãos e ministérios sob coordenação da Secretaria-Geral da Presidência da República. O governo deu um ultimato aos invasores para que deixem o território até o próximo dia 1º de junho. A partir de então, a operação diz que recorrerá à força policial. Em julho deverá ocorrer a destruição de acessos e instalações.

No último dia 24, a juíza federal de Paragominas (PA) Lorena de Sousa Costa acolheu o plano apresentado pelo governo – medida cobrada pelo Judiciário desde 2018 – e determinou “o perdimento dos bens e semoventes [animais] existentes dentro da área, a serem destinados em favor da coletividade indígena”, caso “não seja realizada a desocupação [voluntária] da área no prazo estabelecido”, ou seja, 1º de junho.

O governo estima cerca de 1.600 invasores em diversas porções do território com casas de madeira e de alvenaria, criações de animais, áreas desmatadas e roubo e venda de madeira. A operação mobiliza Ibama, MPI (Ministério dos Povos Indígenas), Funai, Polícia Federal, PRF (Polícia Rodoviária Federal), Incra, Abin (Agência Brasileira de Inteligência), Força Nacional e Ministério da Defesa. A operação deverá ser anunciada à imprensa ainda nesta semana pela ministra Sonia Guajajara (Povos Indígenas).

Com cerca de 280 mil hectares, a Alto Rio Guamá é considerada um dos mais antigos territórios indígenas reconhecidos pelo Estado brasileiro. Foi identificado e reservado ainda em 1945 pelo extinto SPI (Serviço de Proteção ao Índio) e homologado pela Presidência há 30 anos, em 1993, no governo de Itamar Franco. Hoje vivem no território cerca de 2.500 indígenas das etnias Tembé, Ka’apor e Awá-Guajá em cerca de 41 aldeias.

A Agência Pública teve acesso ao comunicado que será distribuído aos invasores da terra indígena. Ele afirma que em 9 de abril de 2014 a Justiça Federal reconheceu, em decisão, o pedido de retirada dos invasores feito em uma ação civil pública ajuizada pelo MPF (Ministério Público Federal). Porém, a União não agiu. “Como não houve o cumprimento da ordem judicial, houve o pedido de pagamento de multa pela União, e foi ordenado que a União, o Incra e a Funai adotassem medidas para a retirada de todos os não indígenas da área”, diz o texto. O comunicado adverte que os invasores “precisam deixar a área e levar todos os seus pertences, inclusive as criações de animais, até o dia 1 de junho. Contamos com a compreensão e colaboração de todos”.

América Tembé, liderança da TI Alto Rio Guamá, disse que é grande a expectativa sobre a operação de desintrusão da terra indígena. Ela falou à Pública durante o ATL (Acampamento Terra Livre) realizado em Brasília na semana passada. Cerca de 60 Tembé integraram a comitiva que veio de ônibus, em três dias de viagem. O grupo manteve conversas com o governo federal para saber da retirada dos invasores.

Ordem judicial começa a ser cumprida pelo governo federal na TI Alto Rio Guamá

“Isso é um sonho nosso, isso é uma luta nossa que tem 40 anos para a desintrusão da nossa terra demarcada. Ela já foi demarcada e vai ser ‘desintrusada’ agora. A Justiça está indo lá e disseram que é para nós não nos envolver. Já entraram lá, entregaram as cartas para os colonos e agora já foram mesmo para desapropriar [retirar]”, disse América. A liderança Tembé disse que a presença dos invasores tem enormes consequências para a vida dos povos indígenas no Alto Rio Guamá.

“[A invasão] traz muitos problemas. É a falta de caça, é a nossa liberdade de ir e vir na nossa área. E conflitos mesmo de roubo de madeira. E até plantio de maconha, de droga. Desmatamento. Sem contar a poluição dos rios, dos igarapés, porque eles querem transformar tudo em pasto, né? Porque nós dependemos da área para nosso alimento, nossa cultura, nosso artesanato”, disse América. Ela calculou em 1.500 famílias de invasores, não 1.600 invasores, como estima o governo.

A liderança Tembé disse ainda que, ao longo do governo de Jair Bolsonaro (2019-2022), a comunidade indígena pediu providências, mas nada foi feito. “Pedimos muitas vezes, nós nunca tivemos êxito. Ele mesmo [Bolsonaro] dizia ao público que não demarcava um milímetro de terra indígena, então não adiantava nem pedir. Nós questionamos muito”, disse América.

Durante o governo Bolsonaro, a invasão se aprofundou e passou a contar com uma ajuda aberta de prefeituras da região, como a de Garrafão do Norte (PA). No final do ano passado, em recomendação dirigida à prefeitura de Garrafão, o Ministério Público Federal escreveu que “os ocupantes irregulares” da terra indígena em sua maioria “praticam a agricultura ou pecuária no interior da terra indígena, em total desconformidade com as normas constitucionais e legais”. O MPF afirmou ainda que, durante uma reunião realizada em 8 de novembro passado entre MPF e a prefeitura, “restou evidenciado que a municipalidade, por meio da Secretaria de Agricultura, promove o auxílio dos moradores que ocupam irregularmente” a terra indígena, “inclusive com a disponibilização de trator para auxiliar os agricultores em trabalhos agrícolas”.

MPF advertiu que “essa atuação do município favorece a permanência da utilização irregular da terra invadida, em total afronta aos direitos” indígenas. 

Em 2021, uma outra recomendação do MPF advertiu as prefeituras de Garrafão, Viseu e Nova Esperança do Piriá a suspenderem “obras irregulares, que incluem aterros sanitários, escolas e rede de energia elétrica, em áreas onde invasores da terra indígena se instalaram”. Em recomendação à concessionária Equatorial Energia, o MPF pediu que a empresa paralisasse imediatamente “a execução de todo e qualquer projeto de instalação de rede elétrica dentro da terra indígena”. Em julho de 2022, o MPF ajuizou uma denúncia contra a empresa por empreendimento em outra terra indígena, a Cachoeira Seca. 

De acordo com o MPF, a invasão à terra indígena Alto Rio Guamá começou durante a ditadura militar, quando o governo transferiu para a região grupos de colonos de outras partes do país. Houve uma longa disputa territorial e também uma batalha judicial que envolveu Funai e Incra. O órgão responsável pela reforma agrária chegou a tentar cortar uma parte da terra indígena, mas a disputa foi resolvida em 1993, com a homologação presidencial. Naquela época, o governo identificou a presença de cerca de 1.100 não indígenas dentro do território.

No decorrer dos anos, o governo passou a indenizar e dar novos lotes, fora da terra indígena, aos ocupantes de boa-fé. De 1997 a 2013, o Incra transferiu aproximadamente 522 famílias para assentamentos da reforma agrária na região. Em 2003, no primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva, o governo fez uma operação e retirou cerca de 190 famílias.

Mas muitos invasores permaneceram na terra indígena. Em 2014, o Judiciário acolheu a ação civil pública ajuizada pelo MPF em 2012 e determinou a saída dos invasores. Quatro anos depois, o juiz federal de Paragominas (PA) Paulo Cesar Mon Anaiss condenou a União a apresentar um plano de desintrusão num prazo de 120 dias, sob pena de uma multa diária de R$ 2 mil até o máximo de R$ 400 mil.

Também em 2018, fartos de aguardar providências do governo federal, os indígenas Tembé criaram seu próprio grupo de “Guardiões da Floresta” com o objetivo de fazer a fiscalização da terra indígena Alto Rio Guamá, a exemplo da experiência de outros povos, como os Guajajara. Em setembro de 2020, um grupo de 40 “guardiões”, com os rostos pintados, uniformizados e pilotando motos, cercou nove invasores e deu-lhes um ultimato para deixarem o território.

Alto Rio Guamá: os indígenas Tembé criaram seu próprio grupo de “Guardiões da Floresta”

Depois da ação, o cacique Sergio Muti Tembé gravou uma mensagem para o então presidente da República: “Bolsonaro, presidente, você tem que ter o respeito com a nossa população indígena. Foi eleito, alguns indígenas, nós votamos em você. Você tem que ter um respeito pela nossa cultura, nossa tradição. Quando vocês chegaram aqui no Brasil, nós já estávamos aqui, vocês vieram invadir. Então, presidente, tem que ter respeito, junto com seus deputados, senadores, parlamentares. Porque nós somos seres humanos, somos gente e somos brasileiros. Peço para você ter um respeito por nós. Não venha nos massacrar, não venha falar coisa de nós”.

 

Fonte: Por Rubens Valente, da Agencia Pública

 

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