segunda-feira, 3 de abril de 2023

Por que há tão poucos candomblés de Exu na Bahia?

Há exatas três décadas, o Carnaval de Salvador estava mergulhado numa polêmica em relação à sua decoração de rua. Com o tema ‘Terra dos Orixás’, a ideia era enfeitar os circuitos e pontos turísticos com alegorias representando as divindades do candomblé, e parte do povo de axé chiou. Para relatar o impasse, a extinta Revista Manchete, de circulação nacional, mencionava a posição de um dos orixás no Centro Histórico usando as seguintes palavras: “[durante a folia], o Pelourinho se travestiria em Praça Exu, orixá que no sincretismo representa o Diabo, também chamado de compadre ou homem da rua”.

Associar Exu ao capiroto do cristianismo só começou a ser questionado de forma mais veemente há bem pouco tempo, mas os reflexos de anos de veiculação do orixá da comunicação, justamente, nos meios de comunicação, como a representação do mal, pode ter tido reflexo em algo que pouca gente se apercebe: o reduzido número de terreiros (e até iniciados) que tem Exu como regente.

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Para mudar esse cenário (a lógica cristã de bem e mal não converge com o universo candomblecista), o orixá ganhou uma ajuda bastante importante: o babalorixá Balbino Daniel de Paula, Pai Balbino de Xangô. O Obaràyí, que é tido por muitos como a maior autoridade do candomblé atualmente, contribuiu para a iniciação de um neto de santo seu, dentro do tradicional Terreiro Aganju, em Lauro de Freitas, no final do ano passado.

Mas antes de dar um pulo na RMS para explicar o que acontece, procurei saber do ogan Nilo Cerqueira, reconhecido pesquisador do culto a Exu, o que aconteceu lá atrás que fez o orixá ficar pra trás na preferência de terreiros e iaôs. Segundo ele, para entender a situação, é preciso viajar aos primórdios do candomblé, religião formada no Brasil a partir de tradições religiosas de povos iorubás da África.

“Ele surge a partir de uma reorganização social de homens e mulheres negras escravizadas, e surge como forma de resistência e de preservação de liturgias e procedimentos ritualísticos originados em território africano especificamente no centro oeste africano, nos territórios do povo Bantu inicialmente e posteriormente Daomé, e por fim na costa oeste na região do território Iorubá e do Benin”, contextualiza.

Nilo lembra que nesse processo inicial, a partir do século XVII, foram necessários alguns movimentos e articulações políticas que dessem conta de manter a preservação do culto sem a perseguição imposta pela Igreja Católica e pela aristocracia/burguesia desses períodos. “E a partir disso a gente vai ver uma justaposição ou correlação entre santos católicos, inquices, voduns, e particularmente os orixás, e nessa espécie de taxonomia os orixás foram sendo aproximados aos santos católicos”, destacou ele, que também é militante do movimento negro.

Dessa forma, na Bahia, Ogum ficou sincretizado como Santo Antônio, Oxóssi como São Jorge, Omolu e Obaluaiê como São Roque e São Lázaro, Oxumarê como São Bartolomeu, São João / São Jerônimo / São Pedro como Xangô, Nossa Senhora da Conceição da Praia / Santa Luzia / Nossa Senhora das Candeias como Oxum, Nossa Senhora Santana como Nanã, Cosme e Damião como Ibeji, Senhor do Bonfim com Oxalá e, no final da tabela, Exu como o quê?

“Injustamente, Exu foi sincretizado como o diabo e você pode imaginar que, naquela altura, nenhum sacerdote gostaria de ter o seu terreiro associado ao diabo, mesmo considerando não haver nenhuma relação que se possa estabelecer de comparação entre eles”, conclui o ogan.

Raridades

A capital baiana possui, aproximadamente, 2.700 terreiros. Desses, 1.165 estão presentes no projeto de Mapeamento dos Terreiros de Candomblé de Salvador, uma ação lançada em 2006 pela Prefeitura, com a participação de órgãos governamentais (incluindo a Fundação Palmares) e outras entidades, executada pelo Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia (CEAO). Na listagem, há apenas quatro terreiros de Exu, três deles de nação Keto e um de nação Keto Jêje.

Este último, de nome não informado, está indicado no Alto das Pombas, sob a liderança da ialorixá Claudilene dos Santos de Jesus, enquanto o Ilê Axé Ejê Onan, do pai Robinson dos Santos Lopes, fica na região da Avenida Centenário; o Ilê Axé Odé Tolá, de pai Paulo Roberto José de Oliveira, também é perto, na Federação, enquanto o Ilê Axé Ogum Lonã, de mãe Albertina dos Santos Carvalho, está no subúrbio de Marechal Rondon.

Quando for atualizada, a lista deve ganhar um novo terreiro de Exu, filho do Ilê Axé Opô Odé Ibô, de Cassange, comandado por Urandi Vasconcelos, o Pai Uran. Iniciado em Oxóssi por Pai Balbino de Xangô há cerca de 15 anos, foi Pai Uran quem consagrou, em setembro do ano passado, Rafael do Nascimento Araújo, 29 anos, como filho de Exu.

A raridade da situação ficou demonstrada na reação de Pai Uran ao jogar os búzios e descobrir o orixá de seu filho. “A surpresa foi tanta que chamei os ogans da minha casa, que confirmaram”, relembrou, quando conversamos em setembro passado, no Terreiro Aganju.

A partir daí, foi só uma questão de tempo, e de confirmação junto a Pai Balbino, a quem pediria auxílio na condução do processo.

“É uma oportunidade que eu abracei com muito amor e carinho, primeiro pelo respeito do meu pai de santo quando ele disse 'traga e faça aqui', e eu entendi que ele, ao mesmo tempo, queria ensinar, porque a gente não sabe tudo. Ele é o meu sacerdote, e não existe ninguém melhor para compreender do que ele”, comentou Pai Uran.

“Isso para mim representou um carinho muito grande da parte dele comigo. Eu sou o segundo filho de santo a trazer iaôs para serem iniciados assim. Às vezes não acredito no que está acontecendo. Estou terminando um curso de História, e fico conversando com sacerdotes do Brasil afora, e digo sem medo de errar: estamos diante da maior autoridade do candomblé no Brasil, sem dúvida. Então, pra mim às vezes eu fico sem palavras pra explicar qual o sentimento que eu estou tendo, mas é gratidão”, complementou Pai Uran, sobre a abertura de Pai Balbino para as iniciações.

O mais ‘celebrado’ do trio, filho de Exu, seria o segundo na casa, feito há cerca de 25 anos, em uma ação pioneira e tão rara quanto agora, quando Pai Edgar de Exu, do Ilé Asé Barabo, em Camaçari, recebeu o axé transmitido pelo Obaràyí.

•        Rafael de Exu

Rafael do Nascimento Araújo, prestes a comandar uma casa consagrada a Exu, admitia certo nervosismo na largada do processo de iniciação, concluído em setembro. Mas contou que Pai Uran conseguiu mantê-lo firme, mesmo diante da grande responsabilidade. “Me sinto grato por ele ter me dado esse axé, essa fortaleza. Me fez me manter mais firme, equilíbrio mental, e eu deixei fluir, me deixei levar. Fiquei um pouquinho nervoso, o que é normal de todo iniciado, mas fiquei mais tranquilo ouvindo conselhos dele, de meu avô [Pai Balbino], tendo uma preparação melhor para que acontecesse tudo nos conformes”, nos contou, ainda durante as obrigações na casa.

Sobre o receio de sofrer preconceito por conta do orixá que o escolheu, disse não se preocupar. “Até agora não sofri nenhum [preconceito], mas se sofresse também, me manteria forte, porque a gente sente a energia que a gente traz”.

Sobre a raridade de sua iniciação, também não acha que seja algo tão diferente do que ocorre com os demais. “Eu acho que não diferencia tanto. Talvez seja uma raridade. Fiquei surpreso também porque eu não escolhi o orixá, foi Exu que me escolheu, mas acho que não é tão diferente dos outros porque a energia é uma só”, assinalou Rafael.

•        No mesmo barco

A iniciação de Exu no Aganju seria, conforme as revelações, com outros dois iaôs, um de Oxum e, para surpresa geral (exceto para Pai Balbino), outra de Iansã. “Seriam dois, Exu e Oxum. Só que quando meu pai falou, no início, ele disse 'vamos fazer o de Exu aqui. Você faz o primeiro aqui, e os outros você vai na sua casa'. Só que no dia que eu vim aqui (no Aganju), e que ele (Pai Balbino) viu a menina de Iansã, e ele disse que era para fazer junto. Ela não parecia preparada. Aí no dia seguinte eu fui lá nos pés de Oxóssi, o patrono da minha casa, e ele respondeu o seguinte: 'Exu só viria se Oxum viesse com ele'. E aí ele falou que seriam três, e eu corri pra arrumar a menina de Iansã”, contou Pai Uran.

A menina de Iansã era a acadêmica de Direito Ane Fiúza, 34, que também considerou sua iniciação uma surpresa. “Foi maravilhoso, muito gratificante. Meio nervosa, natural, até porque é de suma importância passar por esse processo. Mas fiquei em paz e me entreguei, deixei acontecer, como deve ser”.

Como foi também para Pedro Oliveira dos Santos, 26, iaô de Oxum. “Para mim foi uma grande realização. Era um sonho que eu almejava muito, no decorrer de alguns anos, e estou muito grato ao meu babalorixá, ao meu avô. Eu sempre senti a energia de Oxum próxima a mim e sempre acreditei que ela fosse o orixá que me regia. Estou muito feliz, muito grato", contou ele, que entrou no mesmo barco.

•        Pai Balbino pioneiro

Babalorixá mais respeitado na Nação Ketu, mas também em outras nações dentro e fora da Bahia, Pai Balbino de Xangô é um dos últimos filhos de santo de Mãe Senhora, lendária ialorixá do Ilê Axé Opô Afonjá, e tem uma ancestralidade que vem da Ilha de Itaparica, do culto de Babá-Egum, com filhos e netos de santo em muitíssimos terreiros.

Quando a coluna esteve no Aganju, para entrevistá-lo, o sacerdote lembrava de apenas três casos de pessoas feitas de Exu na Bahia: uma filha de santo do finado Manuel Rufino de Souza, do Beiru; outra citada em um livro de Carybé e, por fim, seu filho, Edgar de Exu, sobre o qual faz referência na fala a seguir.

“As pessoas confundem Exu com o mal, mas ele não é o mal. Exu é um mensageiro dos orixás. Há 25 anos, eu raspei um rapaz aqui, primeiro da minha geração que ouvi falar que foi feito aqui no Aganju. Chama-se Edgar. Foi o primeiro, é um grande pai de santo, tem um grande terreiro de candomblé”, conta Pai Balbino.

“E agora esse jovem, meu neto de santo. Ele é filho de santo do meu filho de santo. E por ele estar abrindo o terreiro dele, me pediu se ele deixava eu fazer o santo dele aqui; eu disse que ‘as portas estão abertas e você é filho do axé’. A única coisa que eu posso fazer é lhe dar um apoio aqui dentro”.

E como tudo foi dado de bom grado, consagrado, o orixá abriu caminho com seu Opá Exu (ou ogó), um bastão de búzios e cabaças, em formato fálico, que representa a fertilidade, e que serve tanto como arado para retirar os preconceitos da passagem, quanto o nascimento de novas ideias, de um novo tempo. Que o orixá guardião dos templos, das encruzilhadas, das passagens e das casas, da mobilidade, das pessoas e das cidades, mensageiro divino dos oráculos, tenha cada vez mais ampliada suas homenagens, seus espaços e seu respeito. Laroyê!

 

Fonte: Correio

 

 

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